Mesmo que não existisse norma permitindo expressamente o aborto em caso de gestação resultante de estupro, ele seria legal.

Uma análise sobre os fundamentos das normas justificantes do aborto por gravidez resultante de estupro, e do aborto necessário.

Hoje um caso daqueles de embrulhar o estomago chocou o brasil. Uma menina de 10 anos ficou gravida em decorrência de um estupro praticado pelo seu tio. A família da menina entrou com o procedimento de aborto legal, mas mesmo com o amparo da lei tiveram uma negativa do hospital, após isso a família entrou com um processo judicial e conseguiu a autorização. O ponto crítico dessa história foi que o caso tomou uma grande publicidade, fazendo com que fundamentalistas religiosos fossem para frente do hospital com o intuito de atrapalhar o procedimento de aborto legal. A multidão, com gritos de “assassinos” e outros piores, hostilizou a família e a menina vítima do estupro. Apesar de todos os incidentes o aborto foi realizado.

Poucos assuntos dividem tanto a opinião pública no brasil como a descriminalização do aborto, é provável que você que está lendo já tenha a sua posição sobre o tema, por isso escrevo esse artigo não como uma resposta absoluta acerca do tema, mas buscando expor argumentos e contribuir para o debate público sobre esse tema tão sensível, e que mais do que nunca precisa ser discutido por nossa sociedade.

Para fins didáticos vou dividir o assunto em 2 partes, na primeira falando sobre o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, na segunda sobre o aborto em caso de risco de vida da gestante.

ABORTO EM CASO DE GRAVIDEZ RESULTANTE DE ESTUPRO

Ao contrário do que muitas pessoas pensam o aborto por gravidez resultante de estupro é legalizado no brasil, bastando apenas o consentimento da vítima ou do representante se a vítima for incapaz (Código penal artigo 128 inciso II), além disso o aborto deve ser feito até a vigésima segunda semana e o feto deve ter menos de 500 gramas. É importante lembrar que não há a necessidade de se registrar um boletim de ocorrência prévio, bastando que a vítima compareça a um hospital e comunique o ocorrido. O hospital dever ter uma equipe multidisciplinar para avaliar a situação ou tomar as providencias para encaminhar a vítima para um outro hospital que realize todo o procedimento.

Apesar do entendimento legal muitas pessoas costumam se opor, requerendo que a conduta seja criminalizada. A fundamentação seria de que ao interromper a gravidez a vítima de estupro estaria cometendo assassinato, além disso o aborto atacaria o feto que também é vítima, e não o estuprador que é quem deveria ser punido. Passemos então agora a enfrentar esses 2 argumentos.

A primeira coisa que precisamos ter em mente é que o estupro é um dos crimes mais bárbaros a ser suportado (se não o mais). O trauma, o transtorno psicológico, o sofrimento que uma vítima de estupro sofre é de uma intensidade inimaginável, uma situação que só quem já passou pode descrever. Uma vítima de estupro precisa passar por um longo processo de acompanhamento psicológico e isso não garante que ela vai superar o trauma, basta uma simples pesquisa na internet e veremos que as vítimas em muitos casos prefeririam ter morrido a sofrer o abuso, outras não conseguem suportar a dor e os traumas acarretados pelo estupro e acabam pondo fim as suas vidas.

Dito isso obrigar que uma vítima de estupro mantenha uma gravidez decorrente do abuso seria de uma crueldade tremenda, seria legalizar a tortura, fazendo com que todos os dias daquela gestação ela sofresse aquela dor novamente e um estado que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana não pode jamais aceitar isso. Com isso fica claro que mesmo que consideremos que o feto seja sujeito de direitos, e que o aborto seria um “assassinato”, a norma permissora se justificaria com fundamento no estado de necessidade.

O estado de necessidade é uma excludente de ilicitude, está amparado no nosso código penal no artigo 23 inciso I, e é definido no artigo 24 que diz assim: Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Podemos ver portanto que o aborto de gravidez decorrente de estupro preenche todos os requisitos do estado de necessidade, vejamos: o perigo é atual, a gestante sofre incessantemente todos os dias a tortura de ter que suportar a gravidez que a remete ao abuso sofrido, o fato não foi praticado por sua vontade, porque o estupro será necessariamente sempre uma relação sexual contra o consentimento da vítima, além disso não há outro modo de evitar o sofrimento, ou se opta pelo aborto ou se obriga a vítima a passar pelo cruel processo de gestação contra a sua vontade,

O último requisito é que o sacrifício seja razoável, e por mais que o bem sacrificado seja a vida, é razoável que um estado que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, que assegure que ninguém será submetido a tortura ou tratamento degradante, obrigue uma vítima de estupro a passar pelo martírio de uma gestação que a relembre todos os dias do sofrimento de ter sido estuprada? Entendo que não.

Portanto, podemos ver que mesmo que revogassem a norma permissora especial do aborto em caso de estupro, eventual aborto em caso de estupro não poderia ser criminalizado pois estão presentes todos os requisitos do estado de necessidade.

ABORTO NECESSÁRIO

É o aborto em que a gestante está em risco de vida gerado pela gravidez, aqui não importa como se deu a gravidez e sim o perigo ocasionado pela gestação. Esse tipo de aborto também é legalizado, (artigo 128 inciso 1 do código penal) e deve ser precedido de comprovação médica que a gravidez é de risco, além do consentimento da gestante ou de algum representante se a mesma não estiver em condição de exprimir sua vontade.

Esse é o tipo de aborto mais aceito pela população, pois é fácil de perceber a sua fundamentação. A toda pessoa em risco de vida é dado o direito de usar os meios necessários para preserva-la, ninguém pode ser obrigado a aceitar a morte ou seu iminente risco. Assim justifica-se a norma permissiva especial que autoriza o aborto necessário, além disso, trata se de estado de necessidade em seu mais puro sentido.

Vejamos novamente os requisitos do estado de necessidade, o perigo atual é o iminente risco de vida gerado pela gravidez, o perigo não é gerado pela gestante, pois a gravidez hoje em dia é um processo relativamente seguro, sendo as complicações que causam perigo a vida um imprevisto, que não se pode imputar a quem opte por engravidar mesmo que propositalmente, a inevitabilidade do aborto é comprovada pelo laudo médico e por eventuais exames, além disso, não é razoável exigir que alguém se submeta ao iminente risco de morrer, mesmo que seja para preservar a vida de seu filho. Pode a gestante em ato de amor optar por se submeter ao risco, mas não pode um estado obrigar de alguém tal sacrifício.

Por isso entendo que mesmo que se revogassem a norma permissiva especial do aborto necessário, (código penal, artigo, 128 inciso I) o aborto necessário continuaria sendo legal pois presente o estado de necessidade.

 

Por Arthur Lemos

Jus Brasil

 

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