Precisamos de uma Reforma Política?

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, acompanhamos, diuturnamente, nos meios de comunicação nacional, escândalos de corrupção envolvendo atores políticos de variadas agremiações partidárias em esquemas de financiamento privado oficial e extraoficial de campanhas eleitorais, nos quais se revelam, indubitavelmente, as mazelas do programa de representatividade política estabelecido pela Constituição Federal de 1988 e pela legislação eleitoral ordinária.

A opinião pública, atônita, diante dos destaques promovidos pela imprensa e nas manifestações fortemente midiáticas de autoridades com competência funcional à investigação e jurisdição dos fatos, confronta-se com a fragilidade dos interesses republicanos que inspiram a nossa sociedade.

De maneira geral e como forma de negação, a população tende a se rebelar contra as instituições estatais, por meio do discurso de “demonização da política”, contraposto ao sossego momentâneo que lhes causa a ideia de uma ignorância ingênua sobre os grandes e pequenos atos de corrupção tão presentes em todos os momentos da história do Estado brasileiro.

Com efeito, para se afastar do compromisso de responsividade próprio de uma democracia, qualquer reflexão um pouco mais aprofundada põe em risco o consolo da negação e a estratégia de imputar a culpa exclusiva dos desvios a uma instância que, paradoxalmente, por ser descrita de maneira tão genérica, apresenta-se, na maioria das vezes, como uma categoria despersonalizada. Basta reclamar da classe política, e, em segundos, o dever de analisar e ponderar racionalmente sobre os fatos desaparece.

Destarte, nas situações como a relatada a tendência é polarizarmos o debate e estabelecermos pontos-de-vista binários que, de alguma medida, nos protegem em um dos lados escolhidos e nos livram da necessidade de cogitar sobre as nuances presentes em qualquer das posições que se deseja seguir. Revela-se, então, os maniqueísmo, radicalismos e soluções rasas tão comuns em momentos de instabilidade.

Não por acaso, em períodos de crises como tais, a disposição a rupturas, reformas, ou até mesmo ao retorno de situações que negam o Estado de Direito são tão sugestivas àqueles que se colocam irredutíveis ao projeto de se manterem afastados de uma análise reflexiva e responsiva sobre os fatos, sendo estes os mais facilmente manipulados por figuras “heroicas” e caricatas, as quais se dispõem a propagar o discurso extremado e reducionista que tanto lhes conforta.

Também são nestes contextos que se mostra perigosamente indicativa a tendência em concordar e apoiar as exceções ao direito quando usadas contra aqueles que elegemos como os inimigos e causadores do problema, mesmo que estas medidas se mostrem abusivas e inapropriadas à ordem constitucional vigente.

Assim, podemos afirmar que, a despeito de não termos efetivamente proclamado um estado de exceção nos moldes normativos que são configurados na Constituição Federal de 1988, este se faz presente todas as vezes que um ato de autoridade se furta da aplicação da lei, mesmo que em decorrência de uma finalidade, a priori, moralmente justa.

De fato, ao contrário do que se possa supor, o estado de exceção não serve aos propósitos de um governo nomeadamente absolutista ou ditatorial, mas sim às justificativas metajurídicas do republicanismo. É preciso, pois, atenção para as armadilhas da exceção que surgem no interior das democracias e que agem em defesa de valores reconhecidos pelo próprio sistema.

Nas palavras de AGAMBEN uma “democracia protegida não é uma democracia” (2004, p. 29). Com efeito, prender-se à ideia de infantilização do eleitor não contribui para o doloroso, mas necessário processo de amadurecimento e empoderamento dos cidadãos, no ambiente que lhes é inerente pela sua própria razão de ser: a política.

Dessa forma, o presente ensaio se propõe, sinteticamente, a enfrentar a questão perturbadora, que por tantos é tratada de forma assolada, superficial e inconsequente. Devemos analisar qual a necessidade efetiva e o melhor momento para se discutir uma reforma política, bem como, onde reside a urgência para se implementarem mudanças emergentes ao atual sistema eleitoral. Contudo, alertamos para imposição de se refletir, com prudência e responsabilidade, sobre o que, afinal, esperamos de uma democracia, pois não podemos criar falsas ilusões com o intuito de, ao cabo, permanecer no discurso fácil e descompromissado de negar a política.

1) QUAL O PAPEL DO SISTEMA ELEITORAL EM UMA DEMOCRACIA?

Inicialmente, devemos lembrar que a democracia não é um sistema perfeito, pois é formada de homens comuns que padecem da fragilidade e dos vícios inerentes à condição humana. Porém, se escolhemos viver em um país democrático temos que nos preocupar com a forma como esse modelo irá se desenvolver. Disto decorre a importância de pensarmos em como aprimorar o sistema eleitoral.

Segundo BOBBIO (2000, p. 74), “a democracia é um sistema político que pressupõe o dissenso”, contudo, ressalta o autor, “ela requer o consenso apenas sobre um único ponto: sobre as regras da competição”. Consequentemente, a primeira exigência para um estado democrático é a previsão segura de regras que estabeleçam o jogo democrático, ou seja, a existência de um sistema eleitoral cujas leis não comportem muitas dúvidas na sua aplicação e sejam estas pré-definidas antes de se iniciar a disputa eleitoral.

Portanto, a nossa ambição em relação a um bom sistema eleitoral deve se centrar apenas na observância de quatro pontos elementares: i) leis firmes, seguras, binárias, que não comportem interpretações voluntaristas; ii) que estas leis sejam conhecidas de todos os envolvidos na disputa antes de começar o processo, ou seja, que antes de iniciar a contenda todos os players tenham plena compreensão sobre as regras do jogo; iii) que estas leis se adequem a nossa realidade democrática, pois é a democracia que rege o direito eleitoral e não o contrário; iv) que haja meios aptos a garantir a autenticidade do processo, por consequência, que haja fiscalização efetiva e controle eficientes a coibir os vícios, as fraudes e os abusos que porventura maculem a vontade genuína do eleitor.

Ao verificar o cenário político atual, é preciso refletir com parcimônia e seriedade sobre o que deve ser feito para se melhorar neste aspecto. Por conseguinte, em paralelo à ideia acima esboçada sobre os elementos necessários a um bom sistema eleitoral, podemos sugerir algumas mudanças que indicam o aprimoramento do seu regime jurídico, tais como:

  1. Elaborar normas mais seguras, apurando a técnica legislativa das regras eleitorais, pois hoje estas leis são impregnadas de conceitos metajurídicos indeterminados que favorecem uma aplicação voluntarista do seu intérprete, provocando instabilidade no ordenamento. Em consequência, devemos primar pela eficácia abrangente do princípio da anterioridade eleitoral, especialmente no que se refere à jurisprudência, haja vista se observar com regular constância que respostas às consultas eleitorais causam mudanças paradigmáticas de entendimentos, provocando rupturas em concepções até então consolidadas. Da mesma forma, percebe-se que as resoluções eleitorais frequentemente fogem da caracterização meramente subsidiária e complementar à lei eleitoral, pois inovam o ordenamento jurídico criando e alterando direitos sem correlaciona-los a uma fonte normativa primária e preexistente com a agravante que, nos termos do artigo 109 da Lei 9504/99, as resoluções do TSE podem ser expedidas até o dia 05 de março do ano eleitoral.
  2. Aprimorar o vínculo de representatividade entre o cidadão e o mandatário de cargo político, estreitando-se os laços que identifiquem esta afinidade e a compreensão do eleitor em relação ao partido político e ao plano de governo por este escolhido.
  3. Melhorar a fiscalização e os mecanismos de controle contra os vícios e abusos no processo eleitoral, tornando-os mais eficazes para que a detecção do ilícito eleitoral afaste da disputa o infrator, a tempo de garantir, na medida do possível, a integridade do pleito e do seu resultado.

Como pode se perceber, as mudanças necessárias ao aprimoramento do nosso sistema eleitoral são factíveis, mas, ao contrário do que se possa aparentemente supor, não são simples de se realizar, pois impõem a difícil tarefa de implementá-las sem comprometer as características essenciais da nossa democracia.

Destarte, antes de tudo, devemos lembrar que no aspecto político o Brasil se identifica como uma democracia plural, que respeita e confere o direito de representatividade das minorias, defendendo ações em favor da diversidade e da diminuição das desigualdades regionais. Por esta razão, emprega-se no nosso modelo eleitoral o sistema proporcional, que tem por finalidade possibilitar a participação política das minorias e também a limitação constitucional a quantidades mínimas e máximas de parlamentares por estado federado, para se resguardar uma certa proporcionalidade no Congresso Nacional, com vistas à representatividade dos interesses das regiões menos desenvolvidas.

Os fatores acima descritos são características fundamentais a nossa democracia. Assim sendo, não podem ser abandonadas em qualquer que seja a fórmula de arranjo jurídico almejada, a não ser que a aludida reforma política pretenda, na verdade, ser a refundação de um novo ordenamento constitucional no qual a pluralidade não seja mais um valor essencial.

2) MUDANÇAS URGENTES NA LEGISLAÇÃO ELEITORAL PARA O PLEITO DE 2018

Tal qual já exposto, contrariamos qualquer pretensão de reforma eleitoral que comprometa a participação política das minorias, razão pela qual encaramos com desconfiança as propostas que afetam o sistema proporcional, pois reconhecemos nesta fórmula o escopo de preservar a potencialidade de participação política das minorias, por meio da correção de patologias da democracia representativa, que se baseia essencialmente na regra da maioria.

De fato, a finalidade do sistema proporcional é obstruir as vias de expressão e os canais de participação política, garantindo a oitivados interesses e direitos dos grupos políticos minoritários, cujas demandas dificilmente encontrariam eco nas deliberações majoritárias.

Assim, mesmo reconhecendo que inúmeros vícios existentes na prática eleitoral e institucional brasileira transformaram o sistema proporcional de listas abertas em algo impraticável, pois extremamente fragmentado, ainda assim, considerávamos esta fórmula a mais apropriada a nossa cultura democrática.

No entanto, fatores recentes impuseram a precisão de algumas mudanças eleitorais para o pleito que se avizinha em 2018. Neste sentido, apontamos a decisão do STF na ADI n. 4650, julgada em setembro de 2015, que declarou ser inconstitucional a doação privada de pessoas jurídicas para candidaturas eleitorais. Além disto, citamos ainda, a dura comprovação advinda dos recentes escândalos da classe política que nos fez constatar a realidade paralela da absurda corrupção decorrente do financiamento privado das eleições por meio de recursos ilícitos e não declarados.

Diante destes fatos, há o imperativo urgente de simplificar, baratear e tornar exequível um maior controle do processo eleitoral, pois a mera proibição de doação de pessoas jurídicas a candidaturas não é suficiente para afastar o abuso do poder econômico do cenário político atual.

Com efeito, a causa principal do problema são os aportes de recursos ilícitos e não registrados, o que sempre foi proibido, mas que se faz presente nas veredas da corrupção que comprometem não só o processo eleitoral, como também a condução do governo, após eleito.

Portanto, defendemos que mais importante que proibir a doação privada de empresas em campanhas eleitorais seria pensar em meios de simplificar e baratear a disputa eleitoral, tornando possível a eficiência da fiscalização do processo e o controle da prestação de contas eleitorais.

Devemos, então, discutir medidas pontuais que possam ser aplicadas para as eleições de 2018. Extraem-se do projeto de reforma política em trâmite na Câmara dos Deputados com relatoria do Deputado Vicente Cândido (PT-SP) algumas propostas viáveis, dentre as quais, entendemos ser mais urgente a questão do financiamento das campanhas eleitorais, pois visa baratear as candidaturas pela adoção de uma forma de financiamento predominantemente público.

Para simplificar e assim afastar o risco de “caixa 2” como financiamento escuso das campanhas eleitorais, deve-se reduzir a quantidade de candidaturas, tornando, então, exequível a fiscalização e o controle da prestação de contas dos candidatos. Neste sentido, põe-se em discussão no Congresso Nacional a mudança do sistema proporcional de listas abertas para o de lista fechada, por meio do qual a ordem de classificação dos candidatos em cada agremiação é definida previamente ao início do pleito.

Reconhecemos que o sistema proporcional de listas fechadas irá reduzir consideravelmente a quantidade de candidaturas, bem como irá baratear os custos com as campanhas eleitorais. Por consequência, ao simplificar o processo, o novo modelo tornará possível um maior controle e fiscalização da disputa.

Apontamos também como vantagem desta fórmula de listas fechadas a plausibilidade de ser fortalecido o debate ideológico e a clareza dos programas políticos dos partidos com os eleitores.

Outro ganho que pode ser obtido com a adoção do sistema proporcional de listas fechadas é a possibilidade de tornar factível o equilíbrio real entre os gêneros na composição das Casas Legislativas, sobretudo se, ao estabelecer esta fórmula, seja igualmente prescrita a alternância de gêneros para composição classificatória das listas partidárias.

Entretanto, o grande perigo em relação à adoção do sistema proporcional de listas fechadas no Brasil é a existência inconteste de um verdadeiro “caciquismo” presente nos partidos. Infelizmente, a nossa tradição política é permeada de “figurões” e líderes partidários que conduzem as agremiações como se fossem os seus “currais eleitorais”.

Assim, diante da constatação de absoluta inexistência de democracia intrapartidária, é bastante perigosa a implantação do modelo de listas fechadas, pois é provável que a escolha dos nomes e a ordem de composição das listas seja dominada pelos “Caciques” que já estejam exercendo mandato e perpetuando-se no poder e comando da sigla.

Por esta razão entendemos que concomitante à mudança para implementação do sistema proporcional de listas fechadas deve-se estabelecer também reformas profundas a respeito do funcionamento dos partidos políticos, sem que se comprometa a integridade do princípio da autonomia partidária.

Desta forma, defendemos que a definição das candidaturas e a sua ordem de classificação estejam sujeitas a um processo de escolha democrática e prévio às eleições, a exemplo das eleições primárias que já ocorrem em alguns países. Advogamos, também, que normas gerais sobre a organização dos partidos políticos estabeleçam alguns critérios para classificação das listas, tais como a alternância de gêneros na sua composição.

CONCLUSÃO

Este não é o momento mais oportuno para debatermos reformas estruturais do Estado em qualquer que seja o assunto ao qual se remeta a discussão. Não há dúvidas de que precisamos mudar e aprimorar inúmeros projetos de governo, e, até mesmo formas de comportamentos institucionais de poder. Contudo, estamos em um momento de crise democrática, pois a Presidente da República e juntamente com esta o programa de governo eleito no pleito de 2014 foram cassados por meio de um processo, que, embora previsto na Constituição, é reconhecido como medida de exceção democrática[3].

Quando estamos propensos a abandonar as soluções legais em nome da necessidade – definição subjetiva que se enquadra conforme objetivo o qual se queira atingir, tal qual se verifica nas circunstâncias atuais no Brasil, a tendência é, ou aderimos ao estado de exceção ou à revolução, demonstrando-se, pois, o quão perigoso é fugirmos do estado de direito, sobretudo nas crises institucionais.

Por consequência, entendemos que discussões mais profundas sobre reforma política devem ser pensadas e debatidas, em profusão, com a participação dos partidos políticos e dos cidadãos, sem pressa e ansiedade, apenas a partir de 2019. Inobstante, reconhecemos que medidas pontuais devem ser já modificadas para o pleito que se avizinha, dentre as quais apontamos a revisão e modificação do financiamento de campanhas eleitorais e a adoção do sistema proporcional de listas fechadas, com a recomendação que se estabeleçam neste modelo mecanismos de democracia intrapartidária e alternância de gêneros na escolha dos nomes a comporem a lista de classificação dos candidatos nos partidos políticos.

Clarissa Fonseca Maia é Doutora e Mestre em Direito Constitucional- UNIFOR, Professora Adjunta da UESPI e

Advogada do Escritório Fonseca Maia Advogados Associados.

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poletti. São Paulo: Boitempo, 2004.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

BRASIL. Relatório n. 03 da Proposta de Reforma Política. Disponível em:<http://www.camara.gov.br/proposicoesWebv/fichadetramitacao?idProposicao=491790>. Acesso em: 12 de jun., 2017.

 

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