Entre as diversas missões que o futuro presidente da República terá, nos quatro anos de mandato, está a indicação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Dois juízes experientes – Marco Aurélio Mello e Celso de Mello – completarão 75 anos de idade em 2021, idade da aposentadoria compulsória.
A escolha dos substitutos por Fernando Haddad (PT) ou Jair Bolsonaro (PSL) – políticos com visões claramente opostas – deve impactar a orientação da corte em temas cruciais que incluem gestão tributária, Previdência, aborto, direitos de minorias e Operação Lava Jato.
Muitos julgamentos sobre temas polêmicos são decididos com margem apertada de votos. Foi o caso, por exemplo, do que permitiu a promoção de crenças religiosas nas escolas públicas e do que autorizou a prisão de condenados em segunda instância, ambos com 6 votos a 5.
E tramitam no STF ações sobre temas controversos, como a que pede a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação e a que legaliza o porte de maconha para consumo individual, além de processos da Operação Lava Jato contra políticos com foro privilegiado.
O professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas Rubens Glezer destaca que um dos aspectos na estratégia de seleção dos nomes para o tribunal é o alinhamento ideológico. Ou seja, a escolha de um ministro que compartilhe, ao menos em parte, das mesmas visões do governo.
Mas ele observa que, dificilmente, esse juiz pensará como o presidente em todas as áreas, de economia e direito penal a costumes.
E há prerrogativas no exercício da função de ministro que facilitam que o magistrado atue sem necessariamente se orientar por “lealdade” a quem o indicou. Um desses aspectos é a vitaliciedade – o ministro pode ficar na função até os 75 anos, idade da aposentadoria compulsória.
Além disso, os tribunais têm autonomia administrativa e financeira.
“A estratégia de indicação de ministros, de certa forma, visa ter alguém no STF com perfil alinhado em alguma das áreas de interesse do governo: econômica, penal ou em termos de liberdades individuais”, disse Glezer, que é coordenador do Supremo em Pauta, projeto da FGV de pesquisas sobre o STF.
“Mas é muito difícil indicar alguém que esteja 100% com o governo. Haverá um alinhamento num setor ou outro. Mesmo Dias Toffoli, que era considerado pela mídia e senso comum como uma extensão da vontade do Lula (por ter sido advogado do PT e advogado-geral da União no governo Lula), além de não ter favorecido Dilma durante o impeachment, agora não permitiu que Lula dê entrevistas da cadeia.”
O impacto direto do STF na governabilidade
A Constituição Federal permite certa liberdade na escolha dos ministros do STF. Só estabelece que a seleção deve ser feita entre “cidadãos com mais de 35 anos e menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”.
Os nomes devem ser aprovados em votação pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado e pelo plenário.
Atualmente, sete dos 11 ministros do STF foram indicados pelos governos Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT): Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Roberto Barroso e Luiz Fachin.
Gilmar Mendes foi indicado por Fernando Henrique Cardoso; Marco Aurélio Mello foi nomeado por Fernando Collor de Mello; Celso de Mello, por José Sarney; e Alexandre de Moraes, por Michel Temer.
O constitucionalista Joaquim Falcão, membro da Academia Brasileira de Letras, destaca que o STF tem influência direta no teor de políticas públicas e na governabilidade do presidente da República em três diferentes frentes: gestão econômica, pauta social (saúde, educação, direitos de minorias, etc.) e em processos por corrupção.
“O Supremo interfere em políticas públicas, seja governamentais ou não, como em questões de impostos, direitos trabalhistas, aborto e, provavelmente, vai ter que enfrentar a questão do teto orçamentário de gastos (lei aprovada pelo governo Temer que impõe um limite anual de crescimento dos gastos públicos)”, afirmou à BBC News Brasil.
“Então, não é só em relação à corrupção, mas também tem ingerência direta na governabilidade, em diferentes áreas.”
Algumas decisões do STF sobre Previdência ou cobrança de impostos podem gerar gastos públicos bilionários.
Em 2016, por exemplo, por 7 votos a 4, o Supremo proibiu a “desaposentação”, esquema pelo qual aposentados voltavam à ativa e tentavam obter uma aposentadoria melhor do que a primeira. Se tivesse sido aprovado, o impacto imediato aos cofres públicos seria de R$ 7,7 bilhões, segundo cálculo do Ministério da Previdência apresentado na época do julgamento.
O que pode contar na indicação de Haddad ou Bolsonaro
Por causa do impacto de decisões do Supremo nas contas públicas, a visão econômica do presidente pode ser uma das tônicas da seleção de novos ministros, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
“É possível imaginar que haja, num governo Bolsonaro, uma ligação com tendências religiosas e uma preocupação com a redução de gastos do Estado. No governo Haddad, em princípio, teríamos o contrário. Mas é difícil dizer, porque as nomeações de Dilma e Lula não seguiram uma linha clara”, avalia Rubens Glezer, coordenador do Supremo em Pauta.
A professora de Direito da FGV Eloísa Machado, especialista em direitos humanos, observa que, se Bolsonaro for eleito, pode haver uma guinada “conservadora” nos julgamentos do STF em matéria de “costumes” – que envolva, por exemplo, direitos LGBT e flexibilização das regras sobre aborto.
“O ingresso de dois ministros, em 2021, pode tornar o Supremo um tribunal com perfil mais conservador, como já começou a ocorrer com a indicação de Alexandre de Moraes por Michel Temer”, disse.
“Tanto Marco Aurélio Mello quanto Celso de Mello, que vão se aposentar, são juízes com posições bastante favoráveis a uma agenda de direitos humanos e que consideram o impacto da internacionalização nas decisões.”
Juízes com maior tempo de atuação no STF, Celso de Mello e Marco Aurélio Mello votaram a favor de permitir uniões homoafetivas, em 2011, de autorizar a interrupção da gravidez de feto com anencefalia, em 2015, e de permitir que transexuais e transgêneros possam alterar seu nome no registro civil sem a necessidade de realização de cirurgia de mudança de sexo, em março de 2018.
Ministros ‘cristãos’
Algumas declarações dos dois candidatos à Presidência também dão pistas sobre o perfil de juiz que eles consideram adequado para o STF.
Em 3 de agosto, numa sabatina conduzida por apoiadores e transmitida pela internet, Bolsonaro disse que o STF brasileiro está “muito próximo da Suprema Corte venezuelana” e defendeu que o tribunal tenha, pelo menos, “um ministro cristão”.
Em comício no Rio de Janeiro, em 28 de agosto, ele repetiu a ideia de nomear um magistrado religioso. “Tem algum ministro do Supremo que se diga católico ou evangélico? Não sei, desconheço. Somos 90% cristãos”, afirmou.
“Marco Aurélio Mello e Celso de Mello são exatamente dois ministros que prezam muito pela laicidade do Estado. Poderia ser uma mudança radical a indicação de ministros menos resistentes a uma ligação maior entre Estado e religião”, avalia Glezer, da FGV.
Bolsonaro também chegou a propor, durante uma entrevista em julho, aumentar o número de ministros de 11 para 21, para “equilibrar” a composição da Corte, que hoje tem sete juizes indicados por presidentes do PT. Mas o candidato do PSL voltou atrás e afirmou que essa proposta está fora da sua pauta de governo.
“É importante que, para além de uma discussão sobre a influência do perfil do presidente na indicação, a gente preste atenção a propostas de mudança na forma de indicação. Aumentar o número de juízes de um tribunal, historicamente, tem sido um artifício de governos autoritários para dominar instituições que não estejam sob o seu controle”, alerta Eloísa Machado.
Mulheres e negros no Judiciário
Fernando Haddad, por sua vez, tem defendido instituir um mandato fixo para os ministros do STF e aumentar os mecanismos de controle externo do Judiciário, modificando a composição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para incluir “pessoas que não integrem as carreiras” jurídicas.
“É preciso introduzir mudanças na escolha dos integrantes do STF dos Tribunais superiores, conferindo transparência ao processo e um papel maior à sociedade civil organizada. Os nomeados devem ter compromisso com a democracia, com o Estado Democrático de Direito e com a separação de poderes, sobretudo com as garantias judiciais previstas na Constituição Federal”, diz o plano de governo do PT.
Em entrevista ao site jurídico Conjur, Haddad também disse que pretende “aumentar significativamente a presença de mulheres e negros” no Judiciário.
O jurista Joaquim Falcão afirma que um nome para o Supremo que pode ser considerado pelo PT, eventualmente, é o de José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça no governo Dilma.
“Acho que o Haddad não vai mais correr o risco que Lula e Dilma correram com indicações não consolidadamente partidárias, como foi o caso de Joaquim Barbosa, Rosa Weber ou de Roberto Barroso”, afirma.
Nos últimos anos, ministros indicados por Lula e Dilma votaram contra os interesses do PT em julgamentos importantes. Em 2016, o STF decidiu, por 9 votos a 2, rejeitar pedido de Dilma para anular o processo de impeachment. Dos indicados pelo PT, só Ricardo Lewandowski votou a favor da anulação.
Ministros nomeados por Lula, como Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Dias Toffoli, também votaram pela condenação de alguns dos principais políticos do partido no julgamento do mensalão, em 2012.
“Acho que Haddad vai optar por juristas do seu partido. E um dos nomes é o José Eduardo Cardozo. Eles podem querer ter mais certeza sobre os votos dos ministros no curto e médio prazo”, diz Falcão.
Lava Jato
Outro aspecto que pode vir a contar na hora de tomar a decisão é o pensamento em matéria penal.
No mundo jurídico, é comum categorizar os juízes como “garantistas” ou “punitivistas”, termos normalmente usados de forma pejorativa para indicar um magistrado que pesa mais ou menos a caneta em matéria penal – que se utilizam, por exemplo, mais ou menos de prisões preventivas e temporárias nas etapas de investigação e denúncia.
Bolsonaro já disse repetidas vezes que gostaria de ter no STF juízes “como Sergio Moro”, que seriam “rigorosos” na condução de processos de corrupção.
O candidato do PSL defendeu, por exemplo, a manutenção do entendimento do STF de que é possível prender um condenado em segunda instância, antes do trânsito em julgado. Esse entendimento prejudicou o PT, já que viabilizou a prisão do ex-presidente Lula, condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região por corrupção e lavagem de dinheiro.
Já o PT vem criticando a forma de atuação de Moro na Lava Jato e o peso dado por ele a delações premiadas nas condenações. “Eventualmente, uma tônica de Haddad pode ser nomear ministros mais garantistas sob o aspecto penal, em vez de punitivistas. Mas o cerne da Lava Jato não foi, e continua não sendo, o Supremo”, diz Glezer.
“Mudanças nessas investigações teriam mais a ver com a indicação do ministro da Justiça e do procurador-geral da República. Os processos da Lava Jato no STF seguem num ritmo lento se comparado ao que acontece em Curitiba.”
Currículo
Independentemente das motivações na escolha dos ministros, os especialistas destacam que, dificilmente, Bolsonaro ou Haddad optariam por um nome sem um currículo minimamente respeitado na área do Direito.
Isto porque as decisões do plenário do STF são colegiadas – um jurista sem experiência teria dificuldade para convencer os colegas, no embate de ideias durante os julgamentos.
“O que a gente nota é que alguns dos elementos-chave para ser indicado é a circulação pelo meio político, os contatos, o fato de se pertencer a uma certa elite jurídica. É dificil imaginar que serão nomeados outsiders para o STF, até porque o nome também é submetido à votação no Senado”, diz o professor Glezer.
“É importante colocar alguém no Supremo que não seja percebida como inferior e que seja facilmente desautorizado. Tanto Bolsonaro quanto Haddad devem procurar alguém que tenha um currículo e que possa ter a capacidade de convencer o restante do plenário.”