O impeachment “à la Brasileira” muito se inspira no movi- mento constitucionalista americano, que reconstruiu este instituto inglês empregando-lhe contornos políticos, em substituição à feição penalista que o acompanhou em suas origens. Sobre esses novos moldes que conferiram os convencionais da Filadélfia ao instituto do impeachment é que se construiu no Brasil, ainda às mantas do imperialismo, um modelo similar de responsabilização dos detentores de cargos públicos que se centrava em defender a ordem pública do mau uso do poder, afastando-os do exercício.
Nesse diapasão, busca este breve estudo explicitar como funcionam as engrenagens do impeachment no Brasil e nos Estados Unidos da América, ressaltando similitudes e distinções entre esses dois métodos, a partir de análise da tradicional doutrina constitucionalista norte-americana, dos instrumentos legais designados à regulação do instituto em ambas as democracias, bem como de manifestações jurisprudenciais.
O IMPEACHMENT NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
Em termos procedimentais, o impeachment, nos Estados Unidos, inicia-se com o aceite da denúncia pela House of Representatives, por maioria simples, e deságua no Senado, a quem compete o julgamento. A decisão favorável ao impedimento requer voto de 2⁄3 dos “senadores presentes” e o julgamento guarda o peculiar traço de ocorrer em sessão presidida pelo presidente da Suprema Corte, em substituição ao vice-presidente, que preside o Senado.
Alexander Hamilton atribuiu, em seus escritos, natureza plenamente política ao impeachment, sendo sua função a contenção, por representantes do povo, das condutas indevidas dos homens públicos (abuso dos poderes ou violação das atribuições de um cargo público). Ruy Barbosa, na mesma esteira, definiu como finalidade única do impeachment americano a de destituir do cargo o funcionário público.
Nesse sentido, entende-se que a especialíssima magistratura conferida às casas legislativas americanas não tem por objetivo punir os culpados, mas tão somente afastá-los de seus cargos e privá-los do poder. Carlos Velloso, em seu primoroso voto no julgamento do Mandado de Segurança n. 21.623-9, aduz que os americanos teriam importado da Inglaterra tão somente a nomenclatura e a dinâmica processual, vez que o objeto (mandato) e a finalidade (remoção de cargo e elegibilidade) do impeachment nos Estados Unidos distinguem da experiência penalista inglesa. Em mesma inteligência, inclusive, Alexis de Tocqueville entende ser o impeachment estadunidense mais semelhante a uma medida administrativa que a um ato judicial. O eminente ex-ministro Paulo Brossard, reitera que o impeachment, nos Estados Unidos, ataca tão somente a autoridade, o cargo, e não a pessoa que o ocupa; esta, por sua vez, fica exposta à jurisdição ordinária.
Tal limitação da figura do impeachment que subsiste em terras americanas é referida, pelo ex-ministro Carlos Velloso, como uma “jurisdição limitada”. A cúpula legislativa americana, ao prover o impeachment da autoridade executiva ou judiciária, não pode ultrapassar a barreira “administrativa” da sanção. O impedido tão somente perde o cargo, ou torna-se inabilitado para exercê-lo novamente, mas não será julgado criminalmente em sede de impeachment. Mesmo que a origem do impedimento seja criminosa, a análise da criminalidade recairá exclusivamente sobre o poder judiciário, em procedi- mento específico. Assim dispõe a Constituição:
“Constitution of The United States of America”, Artigo I, Seção 3: A pena nos crimes de responsabilidade não excede- rá a destituição da função e a incapacidade para exercer qualquer função pública, honorífica ou remunerada, nos Estados Unidos. O condenado estará sujeito, no entanto, a ser processado e julga- do, de acordo com a lei.
Do caráter puramente político, no caso americano, origina- se a doutrina de que o impedimento prescinde de prévia tipificação da conduta. Importa dizer, então, que, na realidade estadunidense, o impeachment poderá se legitimar de ofensas compreendidas como violações comissivas ou omissivas à Constituição, à lei, a um dever de ofício ou mesmo a partir de simples condutas discricionárias que revelam abuso de poder. Caso ilustrativo é o do juiz federal James Peck, que, em 1831, foi submetido o procedimento de impeachment sob acusações de abuso de poder por condenar um advogado que havia se manifestado insatisfeito com uma sentença por ele proferida.
O IMPEACHMENT NA REPÚBLICA BRASILEIRA
Já em sua primeira aparição em terras tupiniquins, o impeachment surgiu enquanto mecanismo ajustado à simbiose imperial. Introduzido pela Constituição de 1824, trouxe notável inspiração inglesa: estabelecia como inviolável a figura do imperador e permitia a responsabilização penal das autoridades.
Foi justamente a partir da tendência penal das punições aos impedidos que surgiu, nacionalmente, a ideia da existência de “crimes de responsabilidade”. A escolha de tal nomenclatura nas Constituições pátrias, momento no qual o legislador abriu mão de reverberar o popular termo “impeachment”, revela, de certo modo, traços de independência da natureza do mecanismo em sua forma brasileira em relação ao muito influente formato estadunidense. Ainda a esse tempo, já havia previsão constitucional de que os delitos autorizadores do impedimento – bem como o procedimento por meio do qual ele deveria ocorrer – deveriam ser especificados em lei, tendência mantida atualmente.
Com a implementação do Republicanismo, a primeira constituição republicana pátria (1891) – construída tão à imagem e semelhança da estadunidense que carrega o título de “Constituição dos Estados Unidos do Brasil” – deu ao impeachment brasileiro, pela primeira vez, moldes semelhantes aos norte-americanos. Tamanha foi a inspiração que o julgamento – realizado pelo Senado Federal – passou a ser presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal.
Surge, contudo, nessa mesma Carta Constitucional, um imponente traço distintivo do impeachment brasileiro: a separação entre crimes funcionais e comuns, relativamente ao impedimento do presidente da república. A tendência foi mantida pela Constituição de 1988, que atribui competência para julgamento das infrações penais comuns ao STF e, havendo crimes de responsabilidade, ao Senado Federal.
É a partir dessa dualidade atribuída ao impeachment no Brasil que passa o instituto a assumir natureza mista, operando com funcionalidade político-criminal, diferentemente de sua inspiração americana. É dizer: o impeachment brasileiro não só atribui função judicante ao Legislativo Federal para julgar o presidente da república quanto a agressões por ele cometidas “contra o cargo”, como também o faz diante de ilícitos penais comuns que não guardem relação com o exercício da função pública, atribuindo competência ao STF. Torna-se o Senado um tribunal de natureza político-administrativa; e o Supremo Tribunal Federal, uma corte criminal.
A possibilidade de impeachment fundamentado na prática de ilícitos penais, contudo, não altera a essência política da logística do julgamento. Reitera Velloso, por citação de Mário Lessa, que se trata de um processo sui generis, que não se confunde com o processo judiciário, porque deriva de outros fundamentos e visa fins muito diversos. Isto, porque o Senado, ao converter-se em casa julgadora, não se torna um verdadeiro tribunal de Direito. Fato é que, caso quisesse a Constituição que o julgamento do impeachment carregasse toda a tecnicidade e imparcialidade exigida dos magistrados, não teria ela alocado a competência para processamento na Cúpula Legislativa.
Há que se anotar, no entanto, mais um traço distintivo do impeachment brasileiro em relação ao americano: a possibilidade de suspeição dos Senadores incumbidos de julgá-lo. Nos Estados Unidos, não há barreiras quanto ao julgamento político, podendo exercer voto quaisquer senadores, indistintamente. Já no caso brasileiro, há, na lei invocada para dispor sobre os crimes de responsabilidade e o processo de impedimento (Lei n 1.079/1950), taxativa vedação aos legisladores parentes do acusado ou que houverem deposto como testemunhas ao longo do processo.
SIMILITUDES E DISTINÇÕES
Como evidenciado, as diferenças existentes entre o impeachment brasileiro e o estadunidense centram-se fundamentalmente no aspecto procedimental. A essencialidade do insti- tuto foi, notoriamente, mantida. Muito em função de haver, de fato, gigantesca inspiração do legislador constituinte pátrio em relação à Constituição estadunidense, criou-se aqui um impeachment que encontra seu fundamento na mesma premissa que o americano: permitir que os legítimos representantes do povo exerçam punição não ao sujeito, à pessoa, mas ao direito que esta tem de portar um cargo público de relevante espaço discricionário, dando vigor à separação dos poderes e à dinâmica de freios e contrapesos.
O impeachment, no Brasil, manifesta-se em plena sintonia com o impeachment da democracia norte-americana, ao funcionar como forma de julgamento que produz punição político- administrativa, removendo do cargo o Presidente da República, Ministro de Estado, Ministro do Supremo Tribunal Federal ou Procurador Geral da República que incorrer em crime de responsabilidade ou crime comum – ambos previamente tipificados -, por meio de juízo político promovido pelos membros do Legislativo Federal, além de não excluir eventual atuação da jurisdição penal.
Marina Maranhão Melo Marques Mourão
Acadêmica de Direito pela faculdade de Direito da Universidade Federal do Piauí