Violação do Dever de Fidelidade Conjugal no Direito Português

O casamento é sobretudo um contrato com efeitos pessoais que afeta o estado das pessoas que o celebram, resultando em direitos e deveres conjugais para ambos os contraentes. Por essa razão, os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelo dever de fidelidade. Havendo um ato de infidelidade, sendo a finalidade da responsabilidade civil a reparação ou indenização pelos danos sofridos, e não a punição, compete ao cônjuge lesado recorrer a uma ação de responsabilidade civil extracontratual. Está em causa a natureza pessoalíssima de dever de fidelidade, que pode não ser entendido como um dever de caráter obrigacional. Também significa que o ato de infidelidade pode afetar simultaneamente o direito subjetivo absoluto de personalidade e o direito familiar pessoal que decorre do casamento. Acompanhamos a ideia de Mafalda Miranda Barbosa, no sentido de que os próprios direitos familiares pessoais, como é o caso de direito à fidelidade, se encontram numa posição que faz parte da pessoalidade, e, nessa medida, verdadeiras dimensões do direito de personalidade.

Do direito subjetivo absoluto da personalidade do cônjuge lesado retiramos o direito à fidelidade conjugal, pelo que teremos de lhe atribuir um determinado conteúdo patrimonial. Sendo assim, já não estamos tratando do problema da imputação, mas, antes, do problema da determinação do dano. Ou seja, já há uma conduta que põe em causa o dever de fidelidade conjugal e pretendemos indagar o cômputo da indenização. Na verdade, procuramos perceber quais são os danos que o lesado não sofreria se não fosse o ato de infidelidade, e que danos serão ou não ressarcíveis.

A violação do dever de fidelidade poderá, desde logo, resultar na produção de danos morais, tais como o sofrimento e o desgosto de saber que a pessoa com quem estabeleceu um vínculo matrimonial, o qual pressupõe a existência de ligação amorosa, rompeu a confiança existente entre ambos. O sentimento de humilhação pessoal e social associados à traição também serão danos morais indenizáveis. É claro que a determinação do dano em si varia de caso para caso, sendo que há pessoas que conseguirão aceitar melhor a situação, enquanto outras, com tendências mais depressivas, poderão sofrer danos mais graves, o que terá especial relevância conhecendo o lesante tal condição.

Além dos referidos danos morais, poderemos atender ainda a danos patrimoniais, se associarmos o sofrimento resultante da violação do dever de fidelidade à necessidade de frequentar sessões de terapias com psicólogos, resultando assim em despesas. E também, como diz Jorge Duarte Pinheiro, o escândalo em torno do adultério pode forçar o cônjuge lesado a mudar de residência ou a deixar o seu emprego, isto é, danos emergentes e lucros cessantes.

Uma situação particular é aquela em que um dos cônjuges viola o dever de fidelidade envolvendo-se com uma pessoa do mesmo sexo. Será que de tal violação poderá resultar num dano mais significativo, com influência no cômputo da indenização?

Na verdade, não parece que em abstrato se possa defender que uma traição nos termos expostos resulte obrigatoriamente num dano superior, pois é concebível, no caso concreto, que o dano até seja inferior. O cônjuge lesado poderá compreender melhor o ato de traição homossexual. De outro modo, poderá ser maior, se imaginarmos um casal extremamente religioso, que vive numa comunidade pequena e conservadora, sendo possível que a traição com um parceiro do mesmo sexo seja apta a produzir danos morais mais elevados no cônjuge lesado.

A violação do dever de fidelidade com um parceiro do mesmo sexo pode levantar outra questão, que não se prende tanto à traição em si, mas, sim, com a violação do dever de respeito. Com efeito, estes casos acabam por resultar na violação de dois deveres conjugais: o dever de fidelidade e o dever de respeito. Este último considerado um dever residual: entendemos que devemos aplicá-lo nesta situação se tivermos em conta que o cônjuge lesante “escondeu” do cônjuge lesado a sua orientação sexual durante o matrimônio. Dessa omissão poderão resultar outros danos morais ressarcíveis que deverão somar-se aos danos provenientes da violação do dever de fidelidade.

Sendo assim, se a violação do dever de fidelidade com um parceiro do mesmo sexo pode originar uma indenização superior à infidelidade heterossexual, tal não deverá resultar da mera traição em si, mas das circunstâncias do caso concreto.

Delimitados eventuais danos, é necessário perceber como é que são reparados. Resulta do n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil português uma primazia pela reconstituição natural. Contudo, os danos morais, pela sua natureza extrapatrimonial, tornam a reconstituição natural um processo desadequado, na verdade impossível, de reparação. É necessário então fixar uma indenização em dinheiro. Como já tivemos a oportunidade de referir, se a dor e o sofrimento só podem ser atenuados, é possível criar uma vantagem pecuniária que, de certa forma, compense os danos.

O próprio artigo 496.º do Código Civil português prevê a indenização dos danos não patrimoniais, que deverá ser fixada equitativamente pelo tribunal. A fixação de uma indenização por meios equitativos exige que o juiz tenha em conta não só a extensão dos danos em si, mas também o grau de culpa do lesante, a sua situação econômica, a situação econômica do lesado e outras circunstâncias relevantes para uma solução justa. É preciso reiterar que a determinação do dano está dependente dos circunstancialismos do caso concreto.

Na determinação da indenização por violação do dever de fidelidade, para determinar o grau de culpa, o julgador deverá considerar, por exemplo, o estado da relação do casal, se eram próximos um do outro, se viviam em comunhão de leito, mesa e habitação, e a frequência com que o ato de traição foi praticado.

No caso da infidelidade com pessoa do mesmo sexo, o juiz seguirá os mesmos critérios, analisando, ainda, o meio social em que os cônjuges viviam, o fato de fazerem parte ou não de uma comunidade religiosa, se tinham uma atividade laboral reconhecida, ou se eram pessoas de notoriedade pública. Suponhamos que o cônjuge lesado era um advogado reconhecido, com uma atividade exercida num ambiente formal e tradicional, e descobre a infidelidade da esposa com uma pessoa do mesmo sexo. Essa infidelidade teria sérias repercussões no meio social, causando humilhação social e psicológica, eventualmente, com opinadas dos colegas questionando a sua própria sexualidade, impedindo, com alguma probabilidade, a continuidade do seu exercício profissional naquele ambiente e cidade. Acrescido a esse fato, o cônjuge lesado poderá ficar com uma forte depressão, tendo que frequentar sessões de terapia e consultas psiquiátricas para entender toda a situação em que esteve envolvido, durante anos, e que lhe passou despercebida. É certo que o juiz não tem que fazer o papel de um analista, mas através dos laudos médicos e psicológicos que atestam o desequilíbrio emocional do cônjuge lesado, bem como através da prova testemunhal que relata a sua vida sadia e equilibrada antes de descobrir a infidelidade e a orientação sexual do cônjuge lesante, com quem dividiu a vida durante anos, o magistrado tem como avaliar e quantificar o dano. E poderá sempre considerar outros fatores como a cumplicidade do casal, o tempo de convivência e até mesmo a vida social.

Cada indivíduo é único e absorverá os acontecimentos da sua vida de forma diferente. Mesmo, porque a vida do casal é muito própria, cabendo a cada um desenvolver suas expectativas em torno do outro e da vida em comum. A análise do caso concreto revelará que cada situação deve ser estudada cuidadosamente para que se verifique a legitimidade do dano a ser reparado.

Vale ressaltar ainda que não se pode tratar a questão da descoberta da homossexualidade do cônjuge, depois do casamento heterossexual, como uma questão normal ou comum, pois é a ultima coisa que um cônjuge pode esperar do outro. A frustração por parte de um cônjuge, que faz toda a idealização de um casamento e de uma vida familiar, associada ao trabalho, vida social e filhos, com expectativas de estar perante um companheiro heterossexual, deverá ser considerável, quando, de repente, descobre a infidelidade homossexual.

Por outro lado, é certo que o cônjuge lesante não tem culpa da sua orientação sexual, embora atue com dolo a partir do momento em que permite outrem construir uma vida falsa, aparente, com pés de barro. Talvez pela idade em que o casal começou a namorar ou iniciou o casamento, a falta de maturidade não permitiu segurança suficiente ou autoconhecimento quanto à sexualidade, fato que o juiz também irá considerar no cômputo da indenização. Ainda assim, o cônjuge lesante tem sempre a oportunidade de se divorciar, antes de tomar a opção de adultério, sem causar maiores danos ao outro cônjuge.

O dever de fidelidade é algo que deve ser respeitado pelas pessoas e exige alguma transparência entre os parceiros. Portanto, não se pode exigir que o cônjuge lesado tenha compaixão pelo parceiro que lhe é infiel com uma pessoa do mesmo sexo. Não é entendível e não é de aceitar com passividade tal situação. A questão é também o embaraço que o fato poderá trazer ao estado emocional do cônjuge lesado, pois, sendo a orientação sexual reflexa no desejo sexual, então como passaram anos de convivência, construindo uma vida de mentira, num cenário irreal? A personalidade é um valor e não um direito (Pietro Perlingieri) e a concepção da personalidade aproxima-se do valor “dignidade” (Gizelle Câmara Groeninga).

É certo que o juiz não poderá valorar o dano por mera especulação, cabendo avaliar as provas de forma qualitativa e analisar todas as consequências causadas pelas circunstâncias da infidelidade e descoberta da orientação sexual. O cônjuge lesante, ao esconder a sua orientação sexual, não estaria respeitando a personalidade do outro e a ação de responsabilidade civil instaurada nesse sentido não significa desrespeitar as diferenças em razão da sexualidade. Na verdade, as famílias pós-modernas salientam a tolerância de práticas que o tradicionalismo repudiaria e a mudança do paradigma formador da família é um reflexo da mudança dos valores sociais.

De qualquer forma, a infidelidade conjugal é um tipo de maldade que se traduz em uma das dores emocionais mais devastadora que uma pessoa pode experimentar. As pessoas casam idealizando uma vida em comum, dentro de paradigmas tradicionais, com a intenção de construir uma vida em comum, uma casa, filhos, sonhos e sentimentos. Por vezes, coisas físicas e abstratas, algumas comercializáveis, mas principalmente outras de valores imensuráveis. O tempo não volta e não se recuperam a vida e os anos que passaram. E o dinheiro não tem como apagar os malefícios que provocam as chamadas “dores da alma”. Cabe ao magistrado avaliar e determinar o conteúdo patrimonial da violação do dever de fidelidade conjugal.

 

KARENINA TITO Professora. Advogada inscrita na OAB/PI e OA Portugal. Doutoranda em Direito Civil e Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais/Menção em Direito Empresarial pela Universidade de Coimbra-Portugal. (mobility programs – University of Macau-China, University of Bologna-Itália e University of Salamanca-Espanha). Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

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