Desde o advento da Constituição da República de 1988, o Estado já tinha como obrigação tutelar as relações de consumo, especialmente na defesa do consumidor, consoante enuncia o art. 5o, XXXII, da Lei Maior. No entanto, é necessário perquirir se referida proteção se insere igualmente sob o âmbito penal.
Nesse contexto, em 1990, entrou em vigor o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, por meio da lei no 8.078/90, uma legislação extremamente avançada e que modificaria, no cenário jurídico, assim como no meio socioeconômico, as novas relações consumeristas. Diante de várias inovações trazidas pela legislação no âmbito cível lato sensu e administrativo, vieram à lume outras formas de proteção ao consumidor, especialmente de natureza penal.
As relações de consumo estão igualmente protegidas pela ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, assegurando a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados: (…) V – defesa do consumidor, tal como preconizada no art. 170 da Constituição da República.
Além da proteção do consumidor, em suas demandas judiciais e extrajudiciais, acerca da proteção contra práticas abusivas, cláusulas contratuais ilegais, constantemente discutidas no âmbito cível, o consumidor encontra amparo também na legislação penal. Dessa forma, o Direito Penal do Consumidor surge como ramo do Direito Penal Econômico, sancionando determinadas condutas praticadas no mercado e no relacionamento entre consumidor e fornecedor.
No âmbito das relações de consumo, concentram-se importantes aspectos do Direito Penal Econômico, havendo importante ligação com os crimes contra a ordem econômica e contra a economia popular. Nesse contexto, surgiu a lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo e prevê condutas mais graves. No entanto, duas leis penais editadas no mesmo ano (8.078/90 e 8.137/90), deu ensejo a uma despreocupação na sistematização das duas leis, inclusive cuidando do mesmo assunto em ambos preceptivos, havendo revogação tácita de alguns tipos penais.
Inúmeras condutas praticadas por empresários refletem, na maioria das vezes, em lucro desmedido, trazendo refle- xos na economia popular, ou seja, no bolso do consumidor, provocando prejuízos incalculáveis, tendo em vista que a maioria dessas infrações penais, considerados crimes vagos, o sujeito passivo é um número indeterminado de pessoas ou uma coletividade.
A proteção do consumidor parte de uma vulnerabilidade latente, que também é presumida exlege, pois as normas consumeristas têm função protetiva, cuja proteção também é visível na esfera penal. Durante anos, o consumidor sofreu inúmeros abusos por parte de fornecedores de produtos e serviços, especialmente no âmbito econômico, pois as normas cíveis não foram capazes de equilibrar essa relação fornecedor-consumidor.
Com o advento do Código de Defesa e Proteção ao consumidor, surgiram novas práticas nas relações de consumo, como serviço de atendimento ao consumidor, garantia sobre produtos e serviços, esclarecimento acerca de cobranças, ressarcimento de eventuais prejuízos, ou seja, a partir de 1990, as práticas abusivas foram paulatinamente modificando-se, mas ainda resta muito a ser alterado, pois a mudança tem sido muito incipiente e algumas empresas insistem em manter práticas abusivas em detrimento de consumidores, principalmente aos pertencentes às camadas sociais mais baixas.
Nesse sentido vale destacar René Ariel Dotti:
O consumidor brasileiro é um ser carente de proteção contra as mais variadas formas de abuso, desde a qualidade da alimentação, dos medicamentos e de outros produtos de primeira necessidade, até os serviços e as coisas supérfluas. Uma vítima ambulante e multi- reincidente [sic]. (DOTTI, 1990, p. 153).
Os crimes previstos nessa lei podem ser praticados tanto pelo empresário fabricante ou o fornecedor de produtos para comércio. No entanto, encontramos no art. 3o caput, desta lei a definição de fornecedor.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Portanto, o Código de Defesa do Consumidor atribui a qualidade de fornecedor à pessoa física ou jurídica. No entanto, é possível atribuir imputação penal nas relações de consumo à pessoa jurídica?
A responsabilidade penal depende da existência de três elementos, quais sejam: conduta (dolosa ou culposa), resultado lesivo ao bem jurídico e nexo de causalidade entre a conduta e o resultado. Presentes estes elementos, será imperativa a aplicação da sanção penal, salvo quando existir alguma excludente de ilicitude ou de culpabilidade.
No que tange à conduta, sob o aspecto penal, deve ser voluntária e consciente e, por regra, dolosa. É punível a conduta culposa, quando a prática do delito se dá por inobservância de um dever de cuidado objetivo, que torna o resultado ao menos previsível, agindo o autor com negligência, imprudência ou imperícia. A punição a título de culpa é uma exceção e só é possível quando o legislador expressamente a permite, com a previsão de um tipo penal culposo (CP, art. 18, inc. II e § único).
Entretanto, o legislador penal retirou de nosso sistema jurídico todas as possibilidades de responsabilização penal objetiva, adotando exclusivamente a chamada teoria da culpabilidade, em que só se pune penalmente o agente quando sua conduta se revestir do elemento subjetivo.
Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao nexo de causalidade, tendo em vista que o Código Penal, no artigo 13, adotou a chamada teoria da equivalência dos antecedentes, imputando o resultado violador do bem jurídico somente àquele que a ele deu causa, por meio de uma ação ou omissão relevante para o seu acontecimento. Assim, para o Direito Penal, os causadores de resultado são o autor, o coautor e o partícipe da conduta criminosa. O primeiro é aquele que pratica o chamado núcleo do tipo; o segundo é o sujeito que atua ao lado do autor na execução do núcleo do tipo; e o terceiro é o agente que, de qualquer forma, concorre para a ocorrência do fato delituoso, auxiliando, instigando, etc. Todos respondem pelo mesmo crime na medida de sua culpabilidade (CP, art. 29).
Em regra, somente o ser humano pode ser sujeito ativo de uma conduta criminosa. Contudo, excepcionalmente, a pessoa jurídica pode ser responsabilizada por crimes ambientais, consoante enuncia a Constituição da República em seu art. 225, § 3°, cuja responsabilidade penal está disciplinada na lei n° 9.605/98 (art. 3°), assim como por crimes contra a ordem econômico-financeira e crimes contra a economia popular (art. 173, § 5°, Constituição Federal), estas últimas possibilidades, ainda não regulamentadas por lei ordinária, mas expressamente previstas no texto constitucional vigente. Assim preconiza o texto constitucional:
§ 5o A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
O Código de Defesa do Consumidor deveria ter previsto expressamente a responsabilidade penal da pessoa jurídica nessas espécies delitivas, com respaldo no artigo 173, § 5°, da Constituição Federal, mas não o fez. Por isso, ainda resta ampla discussão doutrinária sobre a exigência expressa da responsabilidade penal da pessoa jurídica nessas infrações penais ou se o próprio microssistema permite uma interpretação sistemática, optando pela punição da pessoa jurídica pela prática de crimes contra as relações de consumo. Importante mencionar que o art. 75 da lei 8.078/90 prevê a responsabilidade de quem concorre, de qualquer forma, para a prática desses crimes.
Art. 75. Quem, de qualquer forma, concorrer para os crimes referidos neste código, incide as penas a esses cominadas na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, administrador ou gerente da pessoa jurídica que promover, permitir ou por qualquer modo aprovar o fornecimento, oferta, exposição à venda ou manutenção em depósito de produtos ou a oferta e prestação de serviços nas condições por ele proibidas.
Depreende-se, portanto, que o artigo 75 do CDC veio regulamentar o artigo 173, §5° do Constituição Federal, possibilitando a punição da pessoa jurídica por crimes praticados contra as relações de consumo. No entanto, as respectivas sanções penais devem ser compatíveis com as características peculiares do ente moral, ou seja, penas restritivas de direitos e multa.
Com o avanço nas relações de consumo, houve significativa mudança no relacionamento fornece- dor/consumidor, retirando-se, na maioria dos casos, a pessoalidade das relações e passando a deixá-las impessoais movidas pelas importações, compras on-line e não identificação do fornecedor, movimentando grande quantidade de produtos e serviços, bem como grande soma de ganhos destas relações. Assim, os consumidores e o próprio Estado têm dificuldade de identificar o verdadeiro responsável pelos danos causados aos consumidores nas relações consumeristas atuais.
Nestor Alcebíades Mendes Ximenes
Doutor em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Mestre em Direito Constitucional (UFC). Especia- lista em Direito Processual (UFSC). Professor de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Federal do Piauí – UFPI. Subcoordenador do Curso de Direito da UFPI. Advogado Criminalista. Editor-chefe da Revista Científica da OAB-Piauí. Vice-presidente da ANACRIM-PI