Um dos temas mais discutidos atualmente no Direito é a proteção de dados. As abordagens ao tema geral- mente enfocam o seu lado prático, relacionado à necessidade de adaptação das empresas à Lei Geral de Proteção de Dados e os incentivos para essa adaptação oriundos da possibilidade responsabilização fundamentada na referida lei nacional. No entanto, ainda que seja útil, esse tipo de abordagem encobre a perspectiva constitucional do assunto e suas conexões com problemas ligados aos diversos ramos do Direito Público.
O mundo continua sua caminhada rumo à transformação digital da sociedade. A internet está consolidada globalmente e o avanço das relações públicas e privadas em direção à face virtual da realidade parece ser inevitável. Na política, a internet há muito tempo influencia o debate, pois as redes sociais e outras formas de comunicação digital são os principais instrumentos de transmissão da mensagem política.
No mercado, a transformação digital também interfere no funcionamento das empresas e a aplicação de instrumentos tecnológicos pode ajudar a indústria às custas do bem-estar do consumidor em alguns casos. Na administração pública, há promessas de mudança na forma como são prestados os serviços devidos ao cidadão. O governo digital, como a economia e a política, está sendo levado a essa nova realidade, que aparentemente não tem como ser desfeita.
Partindo do contexto acima, vê-se que necessidade da proteção de dados no universo digital decorre de todos os aspectos constitucionais da vida em sociedade, não se limitando à relação entre consumidores e empresas no mercado virtual. Essa constatação pode ser extraída, por exemplo, da percepção que se tem da crescente influência dos agentes de comunicação que operam na face virtual da realidade, ao capturarem a agenda política dos países e suas regiões. Essa captura opera com a interferência interna dos agentes tecnológicos (empresas de tecnologia, redes sociais etc.) nos processos democráticos, manipulando a formação da vontade da população por meio dos algoritmos que ordenam a moderação de conteúdo nas redes sociais e outras plataformas, tendo como principal insumo a utilização de dados pessoais coletados em massa.
Como resposta normativa aos problemas relacionados ao tratamento de dados na esfera digital, além da Lei Geral de Proteção de Dados, o direito fundamental à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais, já é reconhecido tanto no Direito Constitucional positivo1, como na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que deliberou sobre a constitucionalidade do Decreto Federal no 10.046/2019, que dispõe sobre a governança no compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal e institui o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados2.
No julgamento da ADI 6649 e da ADPF 695, o Supremo Tribunal Federal deu ao Decreto Federal no 10.046/2019 interpretação conforme a Constituição, sendo decidido que os órgãos e as entidades da Administração Pública federal podem compartilhar dados pessoais entre si, com a observância de alguns critérios, com o objetivo de afastar a possibilidade de um tipo de vigilância massiva, que representaria uma espécie de controle inconstitucional do Estado sobre os cidadãos.
Entre os critérios definidos para a restrição de compartilha- mento de dados pela Administração federal, podem ser cita- dos: limitação do compartilhamento a informações indispensáveis ao atendimento do interesse público e ao mínimo necessário para atender à finalidade informada; cumprimento de requisitos, as garantias e os procedimentos estabelecidos na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei 13.709/2018) compatíveis com o setor público; aplicação de mecanismos rigorosos de controle de acesso ao Cadastro Base do Cidadão, à publicidade do compartilhamento ou do acesso a banco de dados pessoais e fornecimento de informações claras e atualizadas sobre previsão legal, finalidade e práticas utilizadas; instituição de medidas de segurança compatíveis com os princípios de proteção da LGPD, em especial a criação de sistema eletrônico de registro de acesso, a fim de responsabilização em caso de abuso; observância da legislação específica e parâmetros fixados no julgamento da ADI 6529 (que limitou o compartilhamento de dados do Sisbin) e atendimento ao interesse público nos casos de compartilhamento de informações pessoais em atividades de inteligência; responsabilização nos casos em que órgãos públicos utilizarem dados de forma contrária aos parâmetros legais e constitucionais, podendo ser aciona- dos servidores e agentes políticos responsáveis por atos ilícitos, visando ao ressarcimento de eventuais danos e penalização por ato de improbidade administrativa.
Os riscos associados ao tratamento de dados pessoais pelos órgãos e entidades do poder público não se restringem à probabilidade de desvios com a finalidade de realizar uma vigilância generalizada e inconstitucional dos cidadãos. Como se sabe, o Brasil é um dos países com maior índice de vazamento de dados no planeta3 e, recentemente, a Agência Nacional de Proteção de Dados abriu vários processos contra diversos órgãos da Administração Pública Federal, Estadual e do Distrito Federal por violações à LGPD4. Os dados pessoais vaza- dos, como nos casos que são objeto de investigação, podem ser utilizados para diversos fins, não somente econômicos, mas também políticos. Desse modo, pode-se cogitar que a apropriação privada dos dados pessoais armazenados pelo poder público tem potencial para desequilibrar inconstitucional- mente o balanço de forças econômicas e políticas, privilegiando grupos de interesse nos dois casos em detrimento do interesse coletivo representado, de um lado, pela livre concorrência e, de outro, pela integridade dos processos político- eleitorais.
Como se vê, é preciso que as instituições da Justiça tenham bastante atenção ao problema relacionado à violação do direi- to fundamental à proteção de dados pessoais, inclusive e principalmente nos meios digitais, eis que não se trata de uma questão restrita ao mercado e à responsabilização de empresas. Além dos interesses dos consumidores, há em jogo, acima de tudo, os interesses dos cidadãos.
Leonardo Gomes Ribeiro Gonçalves
Advogado. Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP.