CONSTITUIÇÃO E SENTIMENTO SOCIAL: QUANDO OS GUARDIÕES SE TORNAM OS ILUMINADOS.

O Estado Constitucional brasileiro se desenvolve seguindo o paradigma
preconizado de Democracia Constitucional solidificado no mundo ocidental,
especialmente a partir das transformações sociais e políticas da segunda metade do
século XX. Neste contexto, identifica-se a conciliação de um padrão normativo
principiológico cerrado na Constituição de 1988, como reflexo do sentimento social
compartilhado, que promove uma evolução cultural à interpretação e efetivação dos
valores constitucionais.

Contudo, em que pese o imperativo de perene afinidade entre a constituição e o
sentimento social em prática no ambiente cultural e político da nação, a questão que se
impõem de forma problemática refere-se à necessidade premente de auferir em qual
medida a voz popular irá representar, de fato, os valores políticos compartilhados no
pacto constituinte e adaptado às mutações jurídicas, ou quando ela é apenas o reflexo de
facções segmentadas da maioria que patrocinam a disseminação de opiniões
apaixonadas e desarrazoadas, tais quais as que contaminam as discussões política,
jurídicas e institucionais contemporâneas pela ótica de um moralismo vulgar.

O conflito ora exposto entre a mens legis e vox populi não é novidade nem
exclusividade do constitucionalismo brasileiro. Na verdade, a preocupação com o
equilíbrio entre estes dois fatores remonta às origens do judicial review norte-americano
sendo bem trabalhado pelos artigos federalistas já na fundação dos estados unidos, tal
qual se observa em MADISON ao se lançar na busca por uma solução republicana para
os males republicanos, que, segundo este autor, advinha das paixões ocasionais e
faccionais do processo democrático, as quais poderiam ruir o projeto de liberdade e
igualdade numa espécie de “tirania da maioria”.

Assim, contra esta ameaça foi confiada a guarda da Constituição àquele poder
que, nas palavras de HAMILTON, seria o menos perigoso, pois além de não possuir a
“chave do cofre”, ou mesmo a “espada do poder político”, seria composto de homens
equidistantes do processo democrático, e, portanto, teoricamente neutros em relação às
paixões políticas ocasionais.

Desta forma, segundo os federalistas, quando a Corte Constitucional invalida
uma lei oriunda do processo democrático, o que se sobressai é a Supremacia da
Constituição, e não dos juízes, pois estes estariam apenas assegurando o compromisso
do povo na fundação contra a ameaça das facções majoritárias ocasionais. A esta
solução denominou-se de posicionamento CONTRAMAJORITÁRIO, sendo este o
principal alicerce para a existência do controle de constitucionalidade.

O contramajoritarismo é, portanto, o motivo universalmente aceito para a
existência de um controle jurídico excepcional às deliberações democráticas, pois se
reconhece neste argumento a utilidade da condição arbitral de uma instituição
equidistante do jogo político, sendo esta eficaz para tutelar as precondições da própria
democracia.

De igual maneira, é com base no dito fundamento contramajoritário que a
Constituição brasileira proclama expressamente no seu texto legal o papel primordial do
Supremo Tribunal Federal como o GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO, o que é
admissível nesta concepção da Corte como órgão neutro, insular e equidistante em
relação às predileções políticas ocasionais que possam ameaçar a integridade dos
valores constitucionais da fundação.

Porém, o que se observa na atualidade no Brasil é uma realidade totalmente
destoante do que prescreve a teoria constitucional sobre revisão judicial, pois se
constata diuturnamente que o STF em recentes manifestações compromete exatamente o
seu fundamento contramajoritário, enquanto corte constitucional.

De certo, o contramajoritarismo vem cedendo espaço para uma excessiva
judicialização, que se desponta na intervenção judicial em assuntos relacionadas à
megapolítica, sendo esta revelada nas questões de grande saliência política e moral que
dividem a opinião pública e são protagonizadas em ambientes de debate jurídico.

Citam-se como exemplos de judicialização da megapolítica as discussões em
Tribunais envolvendo matérias tais quais: (a) casos envolvendo a definição de
resultados eleitorais; (b) corroboração de mudanças na legislação eleitoral por
interpretação judicial; (c) definição da identidade coletiva fundamental de aspecto
social, moral e até mesmo religioso; (d) controle de políticas macroeconômicas, dentre
outros…

Observa-se, assim, que no contexto atual de judicialização da megapolítica o
STF não atua equidistante do cenário político, mas, ao contrário, grande parte daquilo
que é feito “em nome da constituição” representa estratégias de litígio com fins
eminentemente políticos. Até mesmo a judicialização “focada em direitos”, ou seja,
voltada à proteção dos direitos fundamentais, na verdade, encobre disputas ideológicas
profundas, maquiadas por um discurso supostamente jurídico.

Dessa forma, presencia-se na contemporaneidade a propagação de um
protagonismo no qual a atuação do juiz, enquanto ator político central do estado, é a
tônica, prevalecendo até mesmo sobre o resultado acerca do direito debatido, ainda que
seja direito fundamental, e ainda que reclame o fundamento contramajoritário para sua
efetivação.

Preocupa perceber que este comportamento ativista se manifesta até mesmo de
maneira extraprocessual, haja vista a comum atuação de magistrados brasileiros de
forma pública e notória, midiática, acadêmica, institucionalizada por orientações
formais de órgãos judicantes, ou na promoção de ações constitucionais promovidas
pelas suas associações e órgãos de classe.

É o que se faz diuturnamente em uma empreitada judicial processual e
extraprocessual de manifestações públicas do festejado projeto de “combate à
corrupção”, o que revela a presença inconteste de um pernicioso pragmatismo e
moralismo que domina as discussões, inclusive, no que se refere à aplicação de direitos
fundamentais.

Com efeito, a Justiça Brasileira, notadamente a Suprema Corte, vem
sucumbindo ao apelo popular e midiático de nítido caráter punitivista, que se contrapõe
ao viés garantista da Constituição Federal de 1988. Assim, o STF contradiz o
fundamento contramajoritário que se encontra na base de sua própria existência,
porquanto, sendo o guardião da Constituição, a este competiria a salvaguarda das
paixões ocasionais da maioria frente à integralidade dos direitos fundamentais.

Constata-se, então, que a postura moralista se choca com o fundamento
contramajoritário e revela o projeto incipiente do Judiciário se autolegitimar como
instância corretiva, sobretudo, da política, pois até mesmo por meio de comportamentos
ativistas extraprocessuais demonstra-se a preocupação de juízes em se alinhar à opinião
pública, mesmo que em detrimento à fruição individual de direitos fundamentais.

Neste sentido, foi que, em ensaio acadêmico, o Ministro do STF e professor
catedrático da UERJ, Luís Roberto Barroso, publicou artigo científico denominado de
“A razão sem voto: O Supremo tribunal Federal e o Governo da Maioria” (2015), no
qual defende que existem outros fundamentos para justificar a jurisdição constitucional
em uma democracia, e não apenas o tradicional contramajoritarismo. Afirma Barroso
que a evolução da teoria constitucional representada pelo que diz ser o
“neoconstitucionalismo” traz consigo a ascensão do Judiciário, sendo este não apenas o
poder que GUARDA à Constituição, mas também o que REPRESENTA o sentimento
social da Constituição e o que é responsável por ILUMINAR e conduzir o processo
permanente de evolução constitucional. Ou seja, para o Ministro, o STF, além do
fundamento contramajoritário, teria também como base para sua atuação um papel
representativo e progressista-iluminista.

O papel representativo ocorreria quando “em alguns cenários, em razão das
múltiplas circunstâncias que paralisam o processo político majoritário, caberia ao
Supremo Tribunal Federal assegurar o governo da maioria e a igual dignidade de todos
os cidadãos.” Segundo o Ministro, no Brasil atual, este papel se tornou não apenas o
mais visível, como, circunstancialmente, o mais importante da Corte Constitucional
(BARROSO, 2015, p. 21). Afirma Luís Roberto Barroso, sem maiores
constrangimentos que, “em muitas situações juízes e tribunais se tornaram mais
representativos dos anseios e demandas sociais do que as instâncias políticas
tradicionais. É estranho, mas vivemos uma quadra em que a sociedade se identifica mais
com seus juízes do que com seus parlamentares. (2016, p. 26)”. Desta forma, em
atenção ao papel de “vanguarda iluminista” caberia a Corte promover, em nome de
valores racionais, certos avanços civilizatórios e empurrar a história” (BARROSO,
2016, p.4). Em outros momentos, na imprensa nacional, os Ministros Barroso e Luiz
Fux declararam ao jornal Fecomércio de São Paulo, no ano de 2017, que estavam
tentando refundar o país e que “Só o poder judiciário pode levar nossa nação a um porto
seguro.” (Souza, 2017).

É em crítica a este ativismo extraprocessual que Eneida Desiree Salgado
(2018) denuncia as posturas midiáticas de cunho moralista e retórico dos magistrados
brasileiros que se lançam na empreitada de “combate à corrupção” como um verdadeiro
“populismo judicial”. Segundo esta autora, o “populismo judicial” se revela nestas
posturas moralistas, que são mera pirotecnia retórica destinada à satisfação de vaidades
pessoais e/ou à legitimação das decisões do Supremo Tribunal Federal na sua cruzada
moralista e seletiva contra a “corrupção” para agradar aos controladores dos meios de
comunicação de massa. (SALGADO, 2018, p. 28).

Revela-se, também, o acoimado “populismo judicial” quando se percebe que
decisões judiciais são fundamentadas com nítido apelo à opinião pública, mesmo que
para tanto sejam motivadas por elementos de excepcionalidade e com argumentos
morais subjetivos, especialmente quando proclamados em relação à política ou a
políticos, contribuindo, também, para fomentar a “criminalização da política”.
“Problematiza-se assim a independência judicial em face da lei travestida de ativismo
bem-intencionado.” (SALGADO, 2018)

De tudo o que foi exposto, deve-se refletir sobre, de fato, qual o
comportamento do Judiciário brasileiro no projeto de efetivação dos direitos e garantias
fundamentais prescritos na CF de 1988. Destarte, afinal, qual a lógica de atuação da
Justiça brasileira, especialmente do STF, ao “guardar” a Constituição, já que vem
frequentemente se afastando de sua função contramajoritária em nome do denunciado
moralismo e “populismo judicial”?

Com efeito, ao se presenciar Ministros do STF se autoproclamando a
“vanguarda iluminista” de uma representatividade sem voto, cujo fundamento decisório
é de cunho essencialmente moralista e contingencial, vinculando-se a tarefa de uma
verdadeira cruzada de “combate à corrupção”, mesmo que ao custo de um estado de
exceção permanente em que se sacrifica a própria constituição, só resta pensar que há
nas entrelinhas do ativismo judicial um projeto reformista de caráter refundador em
relação aos valores fundamentais da Constituição de 1988.

Mas qual, de fato, é este projeto, já que não se pode ainda identificar qual o
perfil e o papel do juiz brasileiro pós-1988? Afinal, como apontar um projeto reformista
do judiciário brasileiro, se é que este existe, diante de uma verdadeira anarquia no que
se refere as estratégias e técnicas de decisão? Ou estamos realmente reféns de juízes
cujos fundamentos são meramente contingenciais e onde se julga o processo motivado
mais pelo “nome da capa” do que pelo direito constitucional debatido?

Será, então, que como afirmam os professores Martonio Mont’alverne e
Gilberto Bercovicci (2018) em reflexão sobre as promessas constitucionais de 1988, que
os direitos fundamentais são ilusões, haja vista a seletividade do judiciário brasileiro na
tarefa de sua efetivação?

Estas são as inquietudes que se colocam neste breve ensaio, sem a pretensão de
respostas conclusivas, mas sim como provocação para reflexão e crítica de toda a
população e não apenas dos debates eminentemente técnicos e acadêmicos.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto. A Razão Sem Voto: O Supremo Tribunal Federal e o
Governo da Maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Brasília, número
especial, volume 5. 2015. DOI: 10.5102/rbpp. v5i2.3180.
BELLO, Enzo; BERCOVICI, Gilberto. LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. O
Fim das Ilusões Constitucionais de 1988? Revista Direito e Práxis, Ahead of print,
Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: link para o artigo. acesso em 20 de nov de
2018. DOI: 10.1590/21798966/2018/37470.
HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política. In:
MOREIRA, Luiz (Org.). Judicialização da política. São Paulo: 22 Editorial, 2012. p.
139-178.
SALGADO, Eneida Desiree. Populismo judicial, moralismo e o desprezo à
Constituição: a democracia entre velhos e novos inimigos. Revista Brasileira de
Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 117, pp. 193-217 | jul./dez. 2018. DOI:
10.9732/P.0034-7191.2018V117P193.
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira. São Paulo: Editora Contracorrente, 2017.

 

Clarissa Maia

Advogada do escritório Fonseca Maia Advogados Associados,Doutora e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza –  UNIFOR,especialista em direito público e privado pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. 

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