quinta-feira , março 28 2024

A Violência Urbana

Para analisar a violência urbana brasileira é necessário examinar uma série de peculiaridades. É fundamental entender a violência no Brasil como um processo complexo (SUSSEKIND, 1987) que envolve algumas variáveis (VELH0,1987) denominadas objetivas (econômicas e políticas) e subjetivas (culturais e sociais).
Para Michel Misse (2008), que discorre sobre a representação social da violência com base nas obscuras transformações sociais de violência que geram um padrão de violência urbana, a violência decorre de um processo histórico-cultural de “acumulação social de violência”.
Como variáveis ou elementos “objetivos”, consideram-se as condições de sobrevivência efetivamente colocadas pelos agentes econômicos, que determinam e influenciam concretamente a existência das pessoas na sociedade. Fatores estruturais são fundamentais para o entendimento da violência urbana, tendo em vista que a extrema concentração de renda verificada em nosso país aumenta significativamente o número de pessoas empobrecidas e que estão à margem de qualquer decisão política.
Por outro lado, existem os elementos “subjetivos”, que são os aspectos culturais da sociedade, notadamente no que diz respeito à existência de determinados valores que permeiam as decisões, escolhas e opiniões da população.
Alguns tipos específicos de violência urbana sugerem haver um sistema de valores subjacentes às condutas violentas do comportamento coletivo, arraigadas à própria cultura brasileira. Assim, os indivíduos, ao agirem de forma considerada violenta, estariam apenas reproduzindo as próprias condições às quais estão sujeitos em sua vida cotidiana, ou seja, as que já fazem parte de sua cultura e, por esse motivo, se encontram internalizadas em suas mentes.
O Brasil é um país que desde sua colonização vem sofrendo um processo marcante de violência social (COSTA, 1996). Referida violência, no entanto, não teve e não tem uma única forma de manifestação – ” […] é que não há violência, há violências” (SUSSEKIND, 1987, p. 10).
Na década de 1990, o Brasil possuía a maior taxa de homicídios do mundo, seguindo a Guatemala, El Salvador, Colômbia e Jamaica (BUVINIC et al. 1999).
As estatísticas demonstram que as taxas de homicídios (e outros crimes) são mais elevadas em bairros pobres do que em bairros mais abastados. Da mesma forma que os autores e vítimas das práticas violentas são igualmente diversos, não há um único segmento ao qual possa ser atribuída a caracterização de violento ou violentado. Na verdade, o que se pode afirmar é que a violência não se limita à criminalidade, antes ela constitui-se um processo mais complexo, incluindo as esferas econômica, política, doméstica, educacional, urbana, cultural etc.
Outro dado fundamental para se pensar sobre as origens da violência diz respeito à própria cultura brasileira. Entre as implicações do modelo colonial aqui instalado, destaca-se a questão do longo processo de escravidão (VELHO, 1987), juntamente com outros elementos, o uso da força e da violência – práticas largamente utilizadas para legitimar uma ordem social excludente – pode ser considerado como importante fator, responsável pela constituição dos valores e das condutas morais que formam a sociedade brasileira.
Ao tratar da violência, Marilena Chauí enfatiza aspectos da cultura brasileira que, segundo ela, teriam disseminado junto à sociedade uma violência institucionalizada, porém imperceptível, porque difusa, a qual ela denomina “violência horizontal”. Contrariamente à violência “vertical” – a violência visível, exercida de cima para baixo sobre a sociedade – a violência horizontal seria invisível, porque se encontra espalhada pelo interior das relações sociais (CHAUI, 1980).
Em virtude desse processo de institucionalização de uma violência invisível, ter-se-ia desenvolvido no Brasil uma cultura violenta, sob uma aparência de não-violência – o que Chauí denomina o “mito da não-violência do brasileiro”. Com base nesse mito são constituídas algumas explicações quase consensuais para o “problema da violência urbana no Brasil”, estando, na maior parte das vezes, relacionadas às consequências negativas da urbanização, industrialização e migração desenfreadas, que gerariam condições favoráveis à ocorrência de atos violentos, à medida que a miséria, a marginalização, a concentração de renda se acentuariam desordenadamente. Assim, a violência é “vista como uma resposta circunstancial à situação de disfunção social causada por essa transição” (CHAUÍ, 1980, p.17).
O mito é construído graças a um processo de exclusão social e histórica preciso, cuja finalidade é admitir a existência inegável de violência, mas fazendo-a aparecer de modo a negá-la. O primeiro mecanismo de aceitação-negação da violência consiste em tomá-la como um acontecimento esporádico ou acidental e não como constitutiva da própria sociedade brasileira […] (CHAUÍ, 1980, p. 16).
O discurso oficial não relaciona o problema da violência urbana com o sistema econômico vigente, não questionando o modelo capitalista de produção. Ao contrário, reforça a tese de que os problemas socioeconômicos decorrentes do acelerado processo de industrialização e urbanização são os principais responsáveis pela criminalidade, juntamente com as deficiências do sistema policial vigente e com o caráter “inato” dos “infratores”.
A defesa da ação policial é bastante contundente, mesmo diante de evidências, os superiores hierárquicos dos policiais militares e civis em geral saem em sua defesa, apresentando o caso de um “suposto” excesso de violência como esporádico ou mesmo suportável, diante da realidade que “exige” este tipo de procedimento.
Em oposição às manchetes que denunciam os excessos policiais, os secretários da Segurança em geral procuram criar políticas que estimulem a ação de seus subordinados, mesmo que isso implique o aumento indiscriminado do número de mortes.
É possível verificar que determinados segmentos da população são solidários às práticas policiais, demonstrando uma reação que tende a reforçar tais procedimentos, à medida que a presença da polícia na rua tem o significado de “garantir a segurança”.
Há um medo generalizado e difuso que prolifera entre todas as camadas da população. Acuadas pela “onda” de insegurança, as pessoas evitam a exposição pública, bem como usam de uma variedade imensa de dispositivos de segurança a serem instalados em residências e apartamentos.
Ao explorar a ideia de que não haveria proteção em qualquer ambiente, a imprensa favorece a concepção de que o recolhimento é a melhor alternativa, e o comércio, por sua vez, e atendendo a estes apelos, já demonstra estar preparado para este tipo de situação, articulando-se em torno do atendimento domiciliar.
Mas é ilusão pensar que se pode construir uma sociedade segura apenas dentro dos muros de espaços protegidos. O que se consegue com esses muros é aprisionar as pessoas e segregar os mais pobres, mas não necessariamente maior segurança.
Não é o abandono da esfera pública, mas a sua apropriação pelos cidadãos de todas as classes sociais, que permite criar uma melhor qualidade de vida e controlar a violência. Quando os cidadãos de todos os grupos sociais perceberem que têm que sair de trás dos muros, se apropriar do espaço público e como cidadãos organizar a segurança de todos, quem sabe o problema da violência comece a encontrar o seu encaminhamento (CALDEIRA, 1996, p.5-6).
Os dados do Monitor da Violência (2021) mostram que, pela primeira vez, o número de presos cai em um ano, desde 2014. Penitenciárias brasileiras, porém, estão 54,9% acima da capacidade, que é de apenas 440.500 vagas, o que representa um déficit de 241.600 vagas no sistema . O levantamento mostra também que o percentual de detentos, sem julgamento, é maior que o registrado no ano passado: 31,9%, mas ainda há relatos que traçam um cenário caótico, dentro das unidades, com a Covid-19.
O quadro de violência urbana é propício para a difusão da “Cultura do medo”, um efeito derivado, do processo de “acumulação social de violência”, por meio de coberturas midiáticas sensacionalistas de crimes, em sociedades capitalistas globalizadas, permitindo a legitimação de soluções policiais para problemas sociais, em que, através da tecnologia, como por exemplo em redes sociais, o espectador que antes era receptor passivo das mensagens possa, entrar em atividade com comentários em notícias em sites eletrônicos.
Para que os índices de criminalidade no espaço urbano possam ser minorados, é necessária a aproximação do aparato policial com outros sistemas de serviços público e sociais, mas não apenas o pretexto de amedrontar a população, visando o retorno do Estado Máximo, de índole eminentemente policialesca e cerceador das liberdades fundamentais.
Necessária a presença de um Estado garantidor das liberdades de locomoção, de manifestação do pensamento, de opção político-ideológica, econômica, laboral, de exercício do poder familiar, religiosa, dentre outras a traduzir por excelência a noção do status libertatis, impedindo a prática de condutas socialmente violentas.
O que se visa é a aproximação e o diálogo das instituições de segurança pública com a população, a fim de que se restabeleça a confiança que vem sendo diminuída em relação ao papel dos policiais como “protetores da sociedade”.
Com base em experiências no policiamento comunitário, infere-se o melhor instrumento preventivo no combate a criminalidade, mas tudo isso é insuficiente enquanto não houver investimento substancial nos índices de educação, fomentando a cultura e abertura de espaços de cidadania e integração social. Somente assim, ainda que a médio e longo prazo, serão reduzidas as ocasiões propícias ao surgimento e desenvolvimento do comportamento criminoso.
REFERÊNCIAS:
CALDEIRA. Teresa. A cidade fortificada. Folha de São Paulo. São Paulo. 21 set. 1996.
CHAUÍ. Marilena de Souza. A não violência do brasileiro: Um mito interessantíssimo. Revista Almanaque. São Paulo. n.11. p.16-24, 1980.
COSTA. Jurandir Freire da. A devoração da esperança no próximo. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 set. 1996.
MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no rio de janeiro. Civitas [versão eletrônica],8(3), p. 371-385. 2008.
SUSSEKIND. Elizabeth. A manipulação política da criminalidade. Ciência Hoje. Violência: Encarte Especial, v.5. n 28, jun./fev. 1987.
VELHO. Gilberto. As vítimas preferenciais. Ciência Hoje. Violência: Encarte Especial. v.5 . n.28. jan./fev. 1987.
Dr. Nestor Alcebíades Mendes Ximenes
Advogado

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