A LINGUAGEM JURÍDICA: INTERPRETAÇÃO E ATUALIZAÇÃO

O acesso à justiça está relacionado com a compreensão da linguagem jurídica. E a justiça visa ao bem comum. Embora a noção de bem comum seja elástica, é plenamente aceito que se trata do conjunto das condições sociais que oportunizam à pessoa humana uma vida com dignidade.  Não se duvida de que o bem comum constitui a base do Direito, seja no momento da sua elaboração, seja no de sua aplicação. De acordo com o que enuncia Serpa Lopes (LIC, vol. 1, p. 142-143 – apud-JC(Jurisprudência Catarinense) 69/22: […] “o bem comum é um dos destinos da lei, logo deve serinterpretada de acordo com esse bem comum. O bem comum deve ser procurado no próprio destino da lei, feita para um conjunto […]”.A necessidade de compreensão dos textos jurídicos sustenta-se em um direito sobreposto a outros, natural e imperativo. Se o Direito pressupõe justiça, e a justiça é a justeza da interpretação, segundo ensinam grandes mestres juristas, o Direito éuma prática interpretativa.

O Direito surgenas comunidades humanas comomanifestação paradigmática da racionalidade humana, imposta por normatividade, e por meio da linguagem. Só existe Direito, porque existem seres humanos em inter-relação e porque existem diferentes linguagens e formas de se conceber a realidade. O Direitoé uma instituição eminentemente humana, e, como tal, uma realidade da qual não se pode excluir a linguagem.

Em toda profissão ou atividade humana a palavra é útil, mais que isso: é necessária. No mundo jurídico, ela é um instrumental de trabalhoindispensável.As leis são escritas e verbalizadas, logo, palavras. Não se lida com os fatos diretamente, mas com a descrição, narração, simulação, reconstituição desses, em uma tentativa de recriá-los, pormeio da palavra. Assim sendo, torna-se nítida a relação que existe entre o Direito e a Linguagem.Quem lida com o Direito deve expor o conteúdo mais exato com a expressão mais adequada. E isso requer uma convivência definitivamente harmônica e amorosacom a linguagem. Sem a qualidade da desta, o Direito também se faz pouco qualificado.

A linguagem constitui a base da expressão humana eda possibilidade daformação daCultura. Rousseau (1978) já havia mencionado no magistral “Ensaio sobre as origensdas línguas” que a palavra é a primeira das instituições sociais. Especificamente, dentro da área do Direito, campo onde borbulha o movimento incessante da atividade humana, a interpretação, não apenas das leis e dos fatos, e da subsunção da norma aos fatos, ganha lugar de destaque, figurando como núcleo de grande parte dos problemas que se verificam no mundo jurídico.

É pertinente afirmar que a linguagem jurídica é dotada de diferentes virtualidades, em função dos contextos em que ocorre a sua intervenção.Ainda que seja concisa e rigorosa,deverá adaptar-se às necessidades reais, assumindodimensões de complexidade que não podem ser evitadas, conforme a exigência da situação, objetivando o melhor ajuste entre o discurso jurídico e as necessidades dos sujeitos por ele conformados, pois a natureza do Direito deve serantropocêntrica. Sendo esta a razão de sua riqueza e tambéma da riqueza da sua linguagem.

Evidencia-se a natureza porosa e permeável do discurso jurídico, nas suas várias dimensões e manifestações de uma realidade eclética, sendo desejável a objetividade e acessibilidade pretensa e tendenciosamenteuniversal deste discurso. Essa também é uma face controvertida da linguagem jurídica, em razão da existência de um universo tecnicista, da circunscriçãoconceitual, da especificidade dos raciocínios que abrangem desdeas generalizações que efetua aos termos que se aplicam.

O jurista, ao pensar na aplicação das regras jurídicas, deve lançar o seu olhar em todas as direções, para que possa perceber as relações que se instauram no processo de aplicação do Direito, buscando a verdade nos enunciados dos textos jurídicos. Conforme analisa Bittar, (2001, p. 76-77): “Todo ato de linguagem […], enquanto ato de construção de sentido, é um ato […] de seleção de elementos a compor; […] de valores, de estruturas, de formas, de significância, de objetivos, de impressões, de efeitos retóricos, […]” Obtém-se assim um Direito vivo, dinâmico e adequado à realidade.

A hermenêutica ganha relevo nas teorias do Direito, vez que este não se faz uma verdade absoluta e permanente em um texto. Segundo Jauss e seu discípulo Iser (apud Bittar, 2001, p. 76): “[…] diz–se que o texto não é nada sem o seu leitor. Ler é interpretar, e é impossível uma leitura sem que se jogue na compreensão do texto os valores da época, do local e da vida.”Se a interpretação potencializa a juridicidade e toda interpretação é eivada deintersubjetividades, não teria o cidadão “comum” o direito de ler e interpretar, exercendo o seu papel de legítimo leitor, iluminando, com a sua compreensão de mundo, os textos jurídicos que lhe dizem respeito? Pelo menos aqueles que afetam diretamente a sua vida com dignidade,a mesma dignidade apregoada na Constituição Federal de 1988, que postula e alicerça a premissa de um direito humano?

A interpretação é o elemento mediador entrelegislador-intérprete-sociedade, a ser efetivada pela atribuição dos sentidos, à luz da teoria semiótica, que sublinha como elementos essenciais desse processo os valores Intersubjetivos e sociais de uma época. Interpretar o Direito é pensá-lo e compreendê-lo, além de torná-lo compreensível a outrem, para que não ocorram injustiças em face da interpretação.

Reiterando a ideia de que a interpretação possui relevância no Direito, é necessário que não se percam de vista as diversas possibilidades de leitura que um texto jurídico evoca,em busca dos sentidos da norma, ajustando-a à realidade.É necessário interpretar a lei evitando-se, sempre que possível, sua rigidez positivista, sem, no entanto, ir contra oque nela foi estabelecido, objetivandoassegurar, em primeiro plano, o bem comum. Devem serevitadas as interpretações das quais resultem decisões arbitrárias,descontextualizadas e desprovidas de sentidos, a se mostrarem em total desacordo com os significados das palavras JUSTIÇA e DIREITO, e outras das ciências jurídicae sociais, fecundadas,pela atribuição dos significados, socialmente construídos, próximos aos de BEM e VERDADE e por que não dizer também de BELO, em sua expressão mais profunda?

 

REFERÊNCIAS

 

BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. São Paulo: Forense, 2001.

 

BITTAR, Eduardo C. B. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática da monografia para os cursos de direito. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

 

BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa doBrasil. Brasília, DF. Senado, 1988.

 

ROUSSEAU, J. J. Ensaios sobre as origens das línguas.  In:Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

 

SERPA LOPES, Miguel. Lei de Introdução ao Código Civil, vol.I, p. 141apud – JC (Jurisprudência Catarinense) 69/22).

 

Francisca Marta Magalhães de Brito

Professora no Curso de Direito, no Centro Universitário Uninassau, em Teresina-PI, Unidade Jóquei. Graduada em Letras, Economia e Direito. Mestre em Educação e Doutora em Letras. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4983831271831480.E-mail: [email protected]

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