A positivação expressa do direito à proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, no texto constitucional, precisamente no art. 5o, inciso LXXIX, da CF/881, inserido já no ano passado através da Emenda Constitucional no 115, representou a incorporação de um direito fundamental à proteção de dados ao catálogo de direitos e garantias da Constituição.
A elevação do direito à proteção de dados ao ápice normativo do ordenamento jurídico nacional por meio de assento constitucional, tornando-o um direito fundamental explicitamente autônomo, traz implicações normativas e práticas muito significativas, pois, como assenta Ingo Sarlet, mesmo o STF já tendo o reconhecido como direito fundamental autônomo e implicitamente positivado (ADI 6.387 MC-Ref/DF), a sua positivação formal carrega consigo uma carga positiva adicional, ou seja, agrega (ou, ao menos, assim o deveria) valor positivo substancial em relação ao atual estado da arte no Brasil3.
Ingo Sarlet, aludindo ao posicionamento já desde antes adotado pelo STF quanto à proteção de dados, destaca que, além das implicações normativas e práticas trazidas pela positivação expressa na constituição na condição direito fundamental do direito à proteção de dados, este pode (e mesmo deve!) ser associado e reconduzido a alguns princípios e direitos fundamentais de caráter geral e especial, como é o caso, de caráter geral, do princípio da dignidade da pessoa humana, do direito fundamental (também implicitamente positivado) ao livre desenvolvimento da personalidade, do direito geral de liberdade, bem como, de cará- ter especial, dos direitos especiais de personalidade mais relevantes no contexto, quais sejam — aqui nos termos da CF — os direitos à privacidade e à intimidade, e um direito à livre disposição sobre os dados pessoais, o assim designa- do direito à livre autodeterminação informativa.
E é exatamente a partir da compreensão do dito direito à livre autodeterminação informativa que se descortina uma importante discussão acerca do fenômeno da “despersonalização da personalidade”, cujos traços se verificam quando as iniciativas econômicas trabalham em prol da desconsideração da pessoa como fundamento e fonte da ordem jurídica, visando a ganhos econômicos às expensas da autonomia existencial daqueles que são alvos das plataformas digitais.
É importante, para tanto, destacar que os direitos da personalidade transcendem os direitos subjetivos patrimoniais, pois são aqueles dotados de uma eficácia ativa em razão de não serem restritos a um dever de proteção, mas também a um dever de promoção para a inclusão do ser humano em sociedade, tendo como dimensão positiva o livre desenvolvimento da personalidade no que concerne às deliberações existenciais fundamentais. Ou seja, aqui se volta a falar em direito à livre autodeterminação informativa, uma vez que o Estado Democrático de Direito reconhece no ser humano uma fonte de escolhas íntimas que deverão ser respeitadas.
À pessoa, na ordem constitucional, é assegurada que se afirme pelo seu modo de ser, de fato sendo um fim em si mesma, sem deixar ser instrumento para fins heterônimos, preservando a sua autonomia existencial. 6Porém, como bem assenta Paulo Brasil Menezes, o ecossistema do discurso on-line e a atmosfera mediática redimensionaram as atividades humanas e remodelaram os seus comportamentos, ou seja, a facilidade de acesso no mundo da virtualização comunicativa não atrai somente a intenção dos usuários, mas traz a reboque a sua maneira de interagir em sociedade, o modo de se manifestar, as suas preferências e, por certo, o seu comportamento.
E é a partir desse remodelamento comportamental ema- nado de um cenário tecnológico disruptivos que chegamos no mencionado fenômeno da “despersonalização da personalidade”, pois, nesse estágio de alteração comportamental provocada de forma heterônima, sucumbe-se o livre- arbítrio como concebido na narrativa liberal, ao nos depararmos permanentemente com instituições, corporações e agências governamentais que compreendem e manipulam o que até então era nosso inacessível reino interior.
Rosenvald obtempera que a “despersonalização da personalidade” é permeada por três movimentos de configuração: a expropriação da personalidade; a ameaça à autonomia humana através de um ataque à consciência e a conversão do ser humano em um projeto de personalização.
A reunião destes movimentos conduz à compreensão de como é feito o confisco da “vontade de ter vontade” pelo ser humano na tessitura digital, alijando o direito fundamental à proteção de dados com a degeneração do direito à livre autodeterminação informativa, predizendo como vai se dar e comportar a experiência humana, totalmente já reconfigurada pelos interesses econômicos das plataformas digitais.
Nesse processo de degeneração da vontade humana em prol de uma monetização de dados a serem utilizados como meios de esvaziamento da autonomia existencial, por meio da predição comportamental, adquire crucial importância a compreensão mais densa do movimento de expropriação da personalidade intitulado de “capitalismo de vigilância”.
O crescimento dos conglomerados tecnológicos em um contexto de invasão da modernidade na habitualidade social gerou as condições adequadas para se entender que a informação realmente é um grande negócio para quem controla o cenário digital, gerando duas consequências ambivalentes, conforme assinala Paulo Brasil Menezes: “ao passo que solidifica as riquezas monetárias datificada e comportamental nas mãos de poderosas empresas tecnológicas, dando-lhes uma legitimação incalculável para gerir as aptidões humanas, promove uma queda acelerada da liberdade social, criando um grande quadro de erosão democrática.”
A sociedade torna-se verdadeira fonte primária para a produção de um superávit comportamental, obtendo-o com a extração despercebida da persuasão social, de sua emocionalidade, das empatias aos conteúdos curtidos e visualiza- dos nas redes sociais, do estilo de personalidade que cada usuário transmite em suas navegações pelo ambiente digital.A reunião destes movimentos conduz à compreensão de como é feito o confisco da “vontade de ter vontade” pelo ser humano na tessitura digital, alijando o direito fundamental à proteção de dados com a degeneração do direito à livre autodeterminação informativa, predizendo como vai se dar e comportar a experiência humana, totalmente já reconfigurada pelos interesses econômicos das plataformas digitais.
Nesse processo de degeneração da vontade humana em prol de uma monetização de dados a serem utilizados como meios de esvaziamento da autonomia existencial, por meio da predição comportamental, adquire crucial importância a compreensão mais densa do movimento de expropriação da personalidade intitulado de “capitalismo de vigilância”.
O crescimento dos conglomerados tecnológicos em um contexto de invasão da modernidade na habitualidade social gerou as condições adequadas para se entender que a informação realmente é um grande negócio para quem controla o cenário digital, gerando duas consequências ambivalentes, conforme assinala Paulo Brasil Menezes: “ao passo que solidifica as riquezas monetárias, danificada e comportamental nas mãos de poderosas empresas tecnológicas, dando-lhes uma legitimação incalculável para gerir as aptidões humanas, promove uma queda acelerada da liberdade social, criando um grande quadro de erosão democrática.”
A sociedade torna-se verdadeira fonte primária para a produção de um superávit comportamental, obtendo-o com a extração despercebida da persuasão social, de sua emocionalidade, das empatias aos conteúdos curtidos e visualiza- dos nas redes sociais, do estilo de personalidade que cada usuário transmite em suas navegações pelo ambiente digital.
Ao reconhecer o direito à proteção de dados como direi- to fundamental, o legislador derivado aponta para a relevância e preocupação com o ambiente que se encontra muito carente, para não dizer órfão, de tratamento e controle estatal e subjugado e quase monopolizado pelos interesses econômicos, clamando por uma proteção da autonomia existencial do ser humano e afastando o estabelecimento da sociedade como artefatos para produção de dados a serem, em momento futuro, utilizados como fonte de riquezas para seus propósitos unilaterais. Ou seja, o assento constitucional reservado à proteção de dados, para além de preservar a intimidade e privacidade, preserva os direitos da personalidade quanto à autonomia da vontade com direito à “vontade de ter vontade”, afastando a condição instrumental, por Zuboff, que o “capitalismo da vigilância” está impondo.
O “capitalismo da vigilância” mostra-se um atual insight empresarial para gerar capitais desmedidos, fazendo uso dos vácuos que as plataformas prospectam e que os usuários oferecem ao serem fantoches de uma busca de comportamentos e atitudes, que, através de monitoramento constante, liderados por instrumentos artificiais, indicam os seus próprios interesses futuros, que despontam cada vez mais sedentos por novas necessidades que as redes sociais ousam oferecer.
Ou seja, é a utilização da infraestrutura digital para mol- dar o comportamento humano em prol do sucesso do mercado, restringindo sobremaneira a liberdade social e depositando as atitudes dela decorrentes e aprisionamento virtual. O homem, assim, torna-se escravo de si mesmo e passa a introduzir um novo objetivo, mais uma possível conquista em sua lista de desafios, a busca por uma nova liberdade: o direito de ter tempo futuro.
O “capitalismo de vigilância” movimenta-se para for- mar, nas palavras de Paulo Brasil Menezes, uma espécie de “mapa digital da predição humana”, em um verdadeiro projeto de personalização que camufla a própria coisificação da pessoa, despersonalizando as escolhas humanas e promovendo a monetização da vida em troca de segurança, serviços e conveniência, com o apelo de acesso à “exclusividade”, porém não se tratando de um acesso ao mínimo, senão ao máximo existencial, onde o supérfluo assume ares de necessário, registrando que o assistente digital que direciona as compras com exclusividade, “personalizadas” e ditas necessárias é o protótipo deste esvaziamento da intimidade e ideia de solidão, ou seja, um verdadeiro cavalo de Tróia para o qual cedemos conhecimento, autoridade e poder.
Assegurar o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais, enquanto direito fundamental, já devidamente positivado no corpo constitucional, é uma missão estatal e social a ser fortalecida com urgência, principalmente quando se verifica o acelerado desenvolvimento de processos direcionados ao esvaziamento da autonomia existencial das pessoas e na usurpação da “vontade de ter vontade” delas, em prol de um projeto de coisificação e instrumentalismo do produto de trabalho das plataformas digitais, o ser humano. As reações ao processo de “despersonalização da personalidade” devem ser o farol da tutela constitucional civil dos direitos da personalidade, resguardando a autonomia da vontade e a personalização do processo econômico, no qual a pessoa não seja um mero fantoche de escolhas anteriores que predizem o seu comporta- mento e que o “capitalismo de vigilância” não tenha força e o alcance para além do muro do “eu” de cada pessoa.
Fellipe Roney de Carvalho Alencar
Advogado OAB/PI no 8824 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutorando e Mestre em Direito Constitucional pela Escola de Direito de Brasília do Instituto Brasiliense de Direito Público (EDB/IDP/DF), com mobilidade acadêmica e cooperação internacional com a Universidade de Granada – Espanha. Formação Executiva em Compliance (INSPER/SP). Auditor do Tribunal de Justiça Desportiva do Piauí (TJD/PI). Advogado. Sócio- fundador da Sociedade de Advogados Almeida & Alencar Advogados Associados.