“No futebol, o que está em jogo é a humanidade”

Daniel Valentim Mansur

Brasil e Uruguai, final da Copa do Mundo de 1950, Maracanã lotado. O placar era de 1×1 e o Brasil jogava pelo empate. Aos 35’ do segundo tempo, nosso goleiro Barbosa deu um passo à frente esperando um cruzamento do uruguaio Ghiggia, que percebeu a falha de posicionamento e chutou para o gol, acabando não apenas com o que seria a festa da primeira conquista do mundial, mas com a ideia do futebol como símbolo da integração racial brasileira. O saldo foi o silêncio do choque da torcida e o recrudescimento do preconceito nos dias que se seguiram.

Barbosa era negro, assim como o zagueiro Juvenal e o lateral Bigode, todos transformados em bodes expiatórios da derrota. Sobre os brancos, não se falou nada[1]. Mais de setenta anos depois, o racismo continua nos campos e arquibancadas do País, uma ferida que não fecha porque fingimos que ela não existe, oculta sob esse antigo mito do brasileiro como o povo pacífico da democracia racial, que teria aprendido a viver com as diferenças, a transformá-las em identidade nacional.

O futebol nasceu bretão mas foi naturalizado brasileiro. Chegou aqui pelos pés de um branco de pais ingleses de classe média alta, Charles Miller. Era jogado, da mesma maneira, por seus pares, engenheiros e profissionais liberais da elite, que também eram sócios dos clubes em que atuavam. O primeiro time a aceitar negros foi o Bangu, em 1905, time de uma fábrica de tecidos no subúrbio do Rio, fundado pelos donos, que permitiam que seus operários jogassem. O primeiro a vencer um campeonato com negros no elenco foi o Vasco da Gama, em 1923, fato que começou a mudar a mentalidade dos dirigentes. Dez anos depois, com o esporte totalmente profissionalizado, os times mistos já eram a regra.

Negros e brancos jogando juntos, sob uma mesma bandeira, não significa o fim do preconceito, obviamente – como podemos observar ainda hoje. Mesmo que não mais tenhamos jogadores se maquiando com pó de arroz e esticando o cabelo para uma partida, ou que nossos grandes símbolos do futebol sejam Pelé, um negro; e Garrincha, um mulato; ano após ano, os casos de racismo batem recorde. Dados do Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol (2021), do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, mostram que os números passaram de 25 (2016), para 43 (2017), depois 44 (2018), 59 (2019) e atingiram 64 (2021)[2]. Neste 2022, o número de casos atingiu o mesmo patamar de 2021, mas somente até agosto, o que sugere um novo recorde.

Parece um número pequeno? A média de um time brasileiro é de 69 partidas por ano, ou seja, seriam aproximadamente 690 confrontos disputados no Brasil numa temporada, considerando os 20 times da elite. Poderíamos dizer, portanto, que em quase 10% dos jogos haveria um caso de racismo; com raros exemplos de punição efetiva. Trata-se de uma leniência perversa das autoridades, fruto de uma sociedade esquizofrênica que se orgulha de ser um caldeirão democrático de raças e culturas ao mesmo tempo em que se identifica mais com o turista inglês que visita sua feirinha.

Temos o caso exemplar de Neymar, nosso principal nome no esporte, que numa entrevista ao Estadão em 2010, ao ser perguntado se sofria racismo, respondeu com um surpreendente: “Nunca, até porque não sou negro”. A consciência só veio em 2020, quando se manifestou da seguinte forma no Instagram, após sofrer preconceito num jogo do PSG contra o Olympique: “Basta! Não cabe mais, chega!”.

Na crônica “O Brasil desencadeado”[3], Nelson Rodrigues afirma: “Não é só o futebol. É, sobretudo, o homem brasileiro”, referindo-se à representatividade do jogador – da seleção, no caso do texto – para a identidade nacional, eminentemente mestiça. É essa identidade estereotipada que serve para perpetuar tanto o mito da miscigenação igualitária quanto o racismo estrutural que a contamina. O mistério do drible mágico, do “jeito brasileiro” de jogar, do anjo mulato de pernas tortas, nos deleita na partida e na crônica esportiva, mas a julgar pelo ataque dos torcedores e dos adversários, dos gritos de “macaco” e do arremesso de bananas ao campo, o deleite não se dá pelo reconhecimento; mas por um exotismo cruel. Em outras palavras, mais pela dominação do que pela aceitação do outro.

O papel educativo que as instituições deveriam representar tampouco entra em campo. Punições se dirigem aos clubes, e são inócuas: na prática, a CBF estipula multa máxima de R$ 100 mil e perda de mando de campo. Pela Conmebol, o valor é mais alto, podendo chegar a R$ 500 mil nas competições continentais. As pessoas que cometem os atos, por sua vez, torcedores ou profissionais, raramente são punidas com prisão. No máximo, sofrem multas, ficam proibidas de entrar num estádio por certo tempo e prestam serviços comunitários. Contextualizando: fora dos gramados, a injúria racial prevê pena de um a três anos de prisão.

Segundo o IBGE, os negros representam 54% da população brasileira (2020). A partir deste dado, pois, vamos encerrar (na verdade abrir) o texto com algumas perguntas que poucas vezes nos fazemos, sobre as quais pouco refletimos: quantos narradores de futebol negros você conhece? Quantos comentaristas negros que não sejam ex-jogadores? Quantos técnicos negros atuando na série A do Brasileirão? Quantos dirigentes negros de times? E uma última, não menos incômoda: por que este texto sobre racismo no futebol foi escrito por um jornalista e professor branco?

[1] FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.

[2] 2020 foi o ano da pandemia, sem torcedores nos estádios na maior parte do ano.

[3] RODRIGUES, Nelson. A pátria de chuteiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

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