Ministra diz que ‘arapongagem’ é crime e que fornecimento de informações à Abin exige motivo

Cármen Lúcia é relatora no STF de ação que pede restrição do fornecimento pelo governo à Agência Brasileira de Inteligência de dados fiscais, bancários, telefônicos e de inquéritos policiais.

A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou nesta quinta-feira (13) que “arapongagem” (investigação clandestina) é crime e, quando praticada pelo Estado, “é ilícito gravíssimo”.

Segundo a ministra, o fornecimento de informações por órgãos do governo à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) precisa ter uma motivação específica e levar em conta o interesse público.

Ela fez a declaração ao votar no julgamento da ação apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), da qual é relatora. Até a última atualização desta reportagem, o julgamento não tinha terminado.

Na ação, os partidos pedem que órgãos de inteligência não forneçam à Abin dados fiscais, bancários, telefônicos e informações de inquéritos policiais ou da base de dados da Receita Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), atual Unidade de Inteligência Fiscal (UIF).

A ação cita organismos pertencentes ao Sistema Brasileiro de Inteligência, composto por 42 órgãos, como ministérios e instituições federais de áreas como segurança, Forças Armadas, saúde, transportes, telecomunicações, fazenda e meio ambiente — a Abin é o órgão central desse sistema.

Segundo a ação, um decreto do presidente da República, Jair Bolsonaro, que promoveu mudanças na Abin, aumentou o poder da agência de obter dados de cidadãos e investigações.

Para a ministra Cármen Lúcia, o compartilhamento de dados com a Abin tem de ser feito obedecendo o que prevê a Constituição, que veda o acesso a informações sigilosas.

De acordo com os partidos, “esse tipo de compartilhamento e devassa massivos a sigilos constituídos serve apenas para aparelhar o Estado com informações sensíveis sobre quem não for bem querido pelo governante de plantão”.

Segundo a ação, a intenção do decreto foi “aparelhar” a agência, criando uma “Abin paralela”, com desvirtuamento de sua finalidade.

As legendas citam reportagem do site UOL, que revelou produção de dossiê sobre servidores intitulados antifascistas pela reformulada Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Governo contesta

O advogado-geral da União, José Levi do Amaral, argumentou que a ação faz “conjecturas” e “cria um suposto poder inquisitório” da Abin por meio de uma “distorcida” evolução de decretos.

“São decretos de estrutura regimental”, argumentou. “A Abin tem um diretor-geral, que não dá canetada”, afirmou. “A Abin não acessa dados bancários e fiscais”, completou.

Votos dos ministros

Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia afirmou que o compartilhamento de dados previsto em lei deve ser interpretado conforme o que diz a Constituição, que veda o acesso a informações sigilosas.

Segundo o entendimento da relatora, informações só podem ser fornecidas se houver interesse público, afastada qualquer possibilidade de os dados poderem ser entregues para atender interesses pessoais ou privados, e as requisições devem ser motivadas. Já os dados sigilosos não podem ser fornecidos, porque dependem de autorização judicial.

A ministra afirmou que a “arapongagem — para usar uma expressão vulgar, mas que agora está em dicionário: ‘aquele que ilicitamente comete atividade de grampos, e, portanto, de situação irregular’ — essa atividade não é direito, é crime”. De acordo com a ministra, se praticado pelo Estado, “é ilícito gravíssimo.”

“O agente que adota prática de solicitação e obtenção de dados e conhecimento específico sobre quem quer que seja fora dos estritos limites de respeito aos direitos fundamentais e da legalidade comete crime”, complementou. Para Cármen Lúcia, “não há como se ter como automática a requisição”.

Segundo a votar, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que não há “poder requisitório” da Abin e que não houve nenhuma alteração legislativa nesse sentido.

Por isso, afirmou, não vê nenhuma inconstitucionalidade na legislação. Mas considera que não há problemas em o Supremo “assentar” a necessidade de cumprimento de garantias e direitos fundamentais, conforme a relatora.

“Há necessidade de se separar o que é sistema de inteligência e sistema de investigação”, afirmou o ministro.

Moraes disse ainda que não há compartilhamento de dados sigilosos entre órgãos do governo e a Abin. “Se a Abin ou qualquer órgão está desrespeitando isso, é crime. Nenhum inquérito pode ser compartilhado, salvo dados públicos”, afirmou.

“Entendo a preocupação, que deve ser a preocupação de todo estado de direito, evitar espionagem ilegal, mas não vejo nenhuma inconstitucionalidade”, completou Moraes.

ministro Edson Fachin também seguiu o entendimento de Cármen Lúcia, afirmando que a transferência à Abin de dados colhidos por outras instâncias governamentais sem as devidas salvaguardas procedimentais pode conduzir a um cenário de violação sistemática dos princípios da privacidade”.

O ministro citou a criação da Constituição de 1988 e disse que, naquele momento, uma nova ordem constitucional se construiu em “oposição radical” à anterior.

“É preciso traçar, em cada ato singular da ordem jurídica constitucional, a linha divisória que a diferencia do ordenamento autocrático e de suas aventuras caudilhistas. Autoritária foi a ação do governo Vargas sobre o Supremo Tribunal Federal; autoritária foi a ação dos governos da ditadura civil-militar contra o Supremo Tribunal Federal; caudilhesco é o surto autocrático e tirânico de quem ameaça intervir”, afirmou Fachin.

Para Fachin, “o Brasil da legalidade constitucional não admite autoritarismos, não compactua com a corrupção como forma de governança, põe a cobro corruptos e corruptores, protege a ordem jurídica democrática e tem um Judiciário que não se verga a ameaças ou agressões”, disse.

G1

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