A instabilidade das relações de emprego como consequência da inobservância do princípio da separação dos poderes na tramitação legislativa da reforma trabalhista

  1. Introdução

 

Em 23 de dezembro de 2016, o Poder Executivo apresentou projeto de lei ao Poder Legislativo para alterar a Consolidação das Leis do Trabalho e outras leis trabalhistas. Iniciado o processo legislativo pela Câmara dos Deputados, já em abril de 2017 foi o projeto enviado ao Senado Federal.

Em plenário, 177 emendas foram apresentadas pelos senadores. Entretanto, para evitar que o projeto retornasse à casa iniciadora, foi a matéria integralmente aprovada, sem alterações, apenas com a indicação de pontos a serem vetados pelo Poder Executivo, ou alterados por medida provisória.

Em 13 de julho de 2017, a lei da reforma trabalhista foi sancionada, sem vetos. Após uma vacatio legis de 120 dias, passou a vigorar em 11 de novembro de 2017. Três dias após, o Poder Executivo apresentou a medida provisória 808, alterando 85 pontos da lei. Até a presente data, mais de 900 emendas já foram apresentadas pelos parlamentares.

Este artigo objetiva analisar a tramitação da Lei 13.417/2017 sob a ótica do devido processo legislativo constitucional, especialmente no que tange a obediência, ou não, do princípio da separação dos poderes, e a consequente instabilidade das normas que regem as relações de emprego.

 

  1. O princípio da separação dos poderes e o avesso das instituições

A Constituição Federal de 1988 prevê, logo em seu art. 2º, que “são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Esta previsão consagra o Princípio da Separação dos Poderes, antiga norma jurídica que permeia a estruturação do Estado, desde o início de sua concepção teórica, ainda com o pensador Aristóteles.

Como bem consagrou James Madison na obra “The Federalist Papers”, quando da elaboração da Constituição norte-americana, a acumulação de todos os poderes – legislativo, executivo e judiciário, nas mesmas mãos, sejam estas de um, de poucos ou de muitos, pode-se dizer com exatidão que constitui a própria definição da tirania. Daí advém o fundamento teleológico da necessária separação dos poderes.

Sob uma análise exógena, tal norma proíbe que um poder realize incursões indevidas na esfera do outro, de modo a possibilitar que cada um deles efetive suas funções com a independência necessária que a Democracia exige.

De certo que, na evolução da separação total dos poderes para o sistema de checks and balances, a própria Constituição Federal criou mecanismos de interferências recíprocas. Entretanto, esta interpenetração de um poder em outro objetiva coibir abusos, e não usurpar as atribuições típicas de cada poder.

Por outro lado, a partir de uma análise endógena, o Princípio da Separação dos Poderes, e a própria existência do Estado, apenas têm razão de ser se cada esfera – Legislativo, Executivo e Judiciário – exercer as suas atribuições constitucionais. Não deve haver a transferência voluntária da atribuição de um poder para outro, pois a concentração de mais de uma função nas mãos de apenas um poder configuraria a tirania prevista por Madison.

Recentemente, o projeto de lei que inseriu a reforma trabalhista no Brasil, aportou no Senado Federal, para que este exercesse a sua parcela de atribuição legislativa. Tendo sido o projeto originário da Câmara dos Deputados, caberia ao Senado atuar como casa revisora.

Entretanto, como noticiado exaustivamente pela mídia – inclusive pelo próprio site do Senado Federal – a Casa abriu mão de sua atribuição legislativa para garantir a aprovação célere do PLC 38/2017, transmitindo ao Presidente da República a responsabilidade de alterar os pontos inconstitucionais através do veto presidencial ou por meio de medida provisória.

O relator da reforma, senador Romero Jucá, no parecer n. 34/2017, da Comissão de Assuntos Econômicos, apontou diversos pontos do projeto de lei que mereciam alteração. Porém, ainda assim, o Senado aprovou o projeto, transferindo ao Executivo a função de reescrever a lei.

Afirmou, em relação ao contrato intermitente, novidade criada pela reforma, que “futura medida provisória deve conceder salvaguardas necessárias para o trabalhador e talvez delimitar setores em que este tipo de jornada vai ser permitida”. Seguiu, destacando no parecer que “o acordo do Poder Legislativo com o Poder Executivo é que este item seja aprovado conforme o texto atual, sendo posteriormente vetado e possivelmente regulamentado por medida provisória”.

Em relação à possibilidade do negociado suplantar o legislado quanto ao intervalo intrajornada (art. 611-A, III, da Lei 13.467), o relator esclareceu que “defendemos, para este e outros item, o veto por parte do Poder Executivo, com posterior regulamentação por meio de medida provisória”.

Aprovado em plenário, o parecer n. 113/2017 rejeitou as emendas apresentadas pela Casa, sob o fundamento de que “já houve o compromisso público do Presidente da República no sentido de veto e posterior regulamentação, como na questão do adicional de insalubridade das gestantes e lactantes ou do dano extrapatrimonial”.

Neste momento, funcionou o legislativo como o avesso do próprio poder legislativo. Isto porque a função típica e primordial deste poder é a elaboração de leis constitucionais. O que ocorreu, entretanto, foi o encurtamento do processo legislativo pela metade, em afronta às normas constitucionais que regulam o trâmite. Não houve a participação efetiva do Senado Federal, que transferiu sua atribuição ao Executivo. Este, por sua vez, concentrou em suas mãos, na prática, o poder executivo e o poder legislativo.

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, reza o parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal. O poder para legislar foi entregue pelo povo aos representantes eleitos para ocupar as cadeiras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Este poder não é passível de subdelegação. O Senado Federal, ao entregar o poder legislativo a terceiro, afrontou o princípio da separação dos poderes e deixou de exercer a função típica da sua própria existência. Sob este aspecto, a Lei 13.417/2017 é inconstitucional e tirana, pois não representa a fiel vontade do povo.

  1. A reforma trabalhista, a reforma da reforma e a instabilidade nas relações de emprego

A partir da promulgação e publicação, em 13 de julho de 2017, da Lei 13.417/2017, que, alterando diversos artigos da Consolidação das Leis do Trabalho, operou a denominada reforma trabalhista, não foram poucas as discussões e manifestações acerca dos efeitos que seriam causados nas relações de trabalho e na própria sociedade em razão do rebaixamento de direitos da classe trabalhadora.

Também muito se questionou acerca da ausência de diálogo prévio e consulta junto à sociedade civil e entes de representação de empregados e empregadores.

Ultrapassados os 120 dias de vacatio legis, a partir de 11 de novembro de 2017, a novel legislação passou a efetivamente vigorar. E, se muitos trabalhadores e empregadores ainda vinham se indagando sobre como ficariam as relações de trabalho a partir de então, a insegurança passou a reinar de forma absoluta com a edição da Medida Provisória 808.

A MP 808 foi editada no dia 14/11/2017, com apenas três dias de vigência da Lei 13.417/2017 e alterou mais de oitenta artigos da reforma trabalhista. Houve uma verdadeira “reforma da reforma”. Novamente, sem qualquer aviso, sem qualquer diálogo e sem qualquer consulta prévia à sociedade civil e às entidades de representação de empregados e empregadores.

É sabido que a Medida Provisória é editada exclusivamente pelo chefe do executivo federal e, a partir da sua edição, já possui força de lei. Contudo, ao ser apreciada pelo Congresso Nacional, a Medida Provisória poderá ou não ser aprovada, bem como poderá ter o seu texto modificado.

Ainda, caso não seja apreciada no prazo de 120 dias, ela automaticamente perde a sua eficácia, cabendo ao Congresso Federal editar decreto Legislativo para regulamentar as relações jurídicas constituídas sob a égide da Medida Provisória.

Diante de todo o cenário acima apresentado, o que se verifica é que a reforma trabalhista acompanhada da “reforma da reforma” acabou por gerar um clima de extrema instabilidade e insegurança nas relações de trabalho, atingindo milhões de cidadãos e famílias brasileiras.

Se o empregado já não tinha amplo conhecimento de seus direitos trabalhistas, agora, não possui conhecimento nenhum. Ainda, diante de tantas legislações sucedidas e sucessoras, o ser humano trabalhador não possui qualquer prospecto do que poderá vir a ocorrer com o seu contrato de trabalho.

Ao empregador, por seu turno, talvez não reste outra alternativa, senão continuar a aplicar a legislação anterior à reforma, já que, daqui a cento e vinte dias, não se sabe qual será a legislação aplicável e, consequentemente, não se sabe quais serão os poderes e limites da empresa numa relação de emprego.

Se a reforma trabalhista operada pela Lei n. 13.417/2017 já era polêmica por atentar contra princípios constitucionais e internacionais aplicáveis ao Direito do Trabalho e aos Direitos Humanos, a Medida Provisória 808 polemizou ainda mais.

Ao alterar mais de 80 dispositivos trazidos pela Lei n. 13.417/2017, além de confirmar que a reforma trabalhista foi realizada ao atropelo da Carta Magna e em despeito aos princípios da vedação ao retrocesso e do progresso social, a MP 808 gerou uma insegurança jurídica nunca antes vivenciada pela população brasileira.

Não é demais lembrar que a relação de trabalho é uma das mais importantes relações constituídas pela pessoa, tendo em vista que é por meio do trabalho que o ser humano obtém o seu sustento e de sua família, exerce sua função social, se descobre como ser social e coloca em prática suas habilidades, realizando e descobrindo a sua vocação. As mudanças ocorridas no bojo da relação de emprego, assim, repercutem também na vida do ser humano trabalhador e de seu núcleo familiar.

O outro integrante da relação de trabalho, qual seja, o empregador, também necessita de segurança jurídica para bem administrar sua empresa, na certeza de que os contratos de trabalho e as demais ordens emanadas encontram-se de acordo com a legislação pátria.

  1. Conclusão

A tramitação da reforma trabalhista não observou o devido processo legislativo constitucional ao suprimir a revisão do projeto de lei enquanto este detinha status de projeto. Foi a lei aprovada e sancionada às pressas, com o atropelo das fases delineadas pela Constituição Federal.

Com a apresentação de medida provisória, que imediatamente passa a valer, a necessária revisão e discussão das matérias que deveriam ter sido alteradas pelo legislativo antes do envio à sanção ocorrerá após a promulgação da lei. Este processo, que deveria ser prévio, de modo a garantir a segurança jurídica, está sendo realizado de trás para frente, gerando um estado de extrema instabilidade às relações de emprego.

A reforma trabalhista, realizada sem participação social, e a reforma da reforma, realizada às pressas e sem a indagação de suas consequências, que, diga-se de passagem, são nefastas, fragilizam empregado, empregador e sociedade, além de colocarem em xeque a maturidade e sapiência com a qual as mudanças legislativas foram e vêm sendo realizadas no Brasil.

Camilla Holanda Mendes da Rocha é Procuradora do Trabalho no Ministério Público do Trabalho – MPT. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho.

Fernanda Pereira Barbosa é Procuradora do Trabalho no Ministério Público do Trabalho – MPT.

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